25 agosto 2013

Respirar sem ruído



No Passeio dos Espanhóis, ao longo do dia, havia, para todos, um momento especial. De manhã cedo era dos vendedores do Mercado e de quem tinham passado a noite a dançar. Os filhos da madrugada, de olheiras fundas e modos liberais. Depois, o Passeio era ocupado pelos homens que liam jornais, de preferência os jornais assinados pelos cafés com esplanada.  Logo a seguir passavam os corredores de fundo,  no treino infinito que leva à Maratona.  Ao fim da manhã, porventura meio-dia, o Passeio estava deserto. À tarde as tias e as avós tomavam chá e tagarelavam com ruído até irromper uma vaga de adolescentes  para assinalar a happy hour e confirmar os cocktails e as músicas da moda, nessa época balnear. Mesmo à noite, o Passeio dos Espanhóis assistia a várias revoadas de ocupantes.
Estes dois chegaram ao anoitecer, que era, a par do meio-dia, uma das duas pausas da circulação no Passeio dos Espanhóis, entre as vagas descritas. Sentaram-se num banco virado para o mar, de costas para a loja dos gelados, e ficaram assim algum tempo, imóveis, silenciosos. Nesse início de noite, ele pegou-lhe na mão. Furtivamente, para quem passasse não se aperceber, embora aquela fosse a hora de não passar ninguém. Ninguém que olhasse, desse conta, comentasse.  Pouca coisa haveria, de facto, para comentar. Desta vez, contra o esperado, ele não sente nada. O cheiro da lavanda está mais próximo. Mas as mãos são de gesso. Duas mãos de gesso, a sua tomando a iniciativa e segurando a outra, canhestramente.
Ao fim de algum tempo (quanto tempo?), a mão dela ganha alguma vida. Roda, até as palmas se enfrentarem, entrelaça os dedos, e puxa a mão dele ligeiramente para a frente. Olha para o conjunto, duas mãos unidas, sem braços, sem corpos, como se não pertencessem a ninguém, como se uma das mãos não fosse a sua, primeiro aprisionada na mão dele e agora inquieta e com iniciativa. Traz as mãos para a luz. Mas não é a mão dela. É a mão de alguém e a mão dele. A mão do intruso, do imitador, do que quis ser como os outros. A expressão dela é dura.  Ele sabe que aquele ar trocista, carregado de censura, quer dizer:
- És afinal igual a todos. Tão previsível. A querer o que todos querem, o que os outros dizem que fazem.
Cai a noite. Chegam os batedores das primeiras famílias, em alegre correria. Soltam-se as mãos.

A mãe dela ainda não deu conta. Nem os irmãos mais velhos. Como é que ele pôde perceber antes de todos? Não foi preciso que chegasse o Verão e ela despisse as camisolas. Antes disso ele já sabia. Não tinha palavras para aquele encanto secreto. Coleante. Não apenas o corpo mas o movimento. Os ombros, as ancas, a forma como avançam e recuam ou sobem e descem. Tudo lhe parece perturbador e excessivo. A redondez das mamas e a finura dos punhos e dos tornozelos. E tem medo que os outros percebam e que a roubem. Que a levem. A fechem em novenas. Não a deixem mais sair a esta hora das pré-pubescentes, quando as esplanadas dos Passeio dos Espanhóis estão desertas, as crianças ainda jantam e, nos apartamentos alugados ao mês, os cruéis adolescentes afiam os adereços.

Soube-o pela alteração que o faz respirar mais depressa e lhe retira o sangue da cabeça, deixando-o na meia sombra. Respirar. Controlar os batimentos do coração e a distribuição do sangue no seu corpo em alvoroço. Coisas tão fáceis e naturais e, de repente, tão complexas. Respirar sem ruído. Respirar, simplesmente. Encher o peito de ar sem suspirar. Esvaziar o peito sem gemer. Abrir os olhos sem ver. E sem que se veja essa coisa nova e vergonhosa que ela agora governa ingenuamente, apenas por se mexer à frente dele, por se espreguiçar com tanto encanto, por deixar cair o queixo contra o ombro, por juntar as escápulas avançando o peito, por cruzar o dorso de um pé contra a perna e mostrar a ballerina branca, pelo estremecimento violento da coluna, quando uma manhã inadvertidamente ele lhe tocou.

Tão exíguo o sangue na sua cabeça e tão copioso entre as pernas.  Tantos humores e tão pouco sentimento. Tão poucas palavras também. Falta-lhe léxico. A palavra decisão, a palavra consentimento.  E ali estão eles no Passeio dos Espanhóis. Dois seres sem lugar nas idades dos humanos, entre o dia e a noite.  Pega-lhe outra vez na mão. Vão-se beijar, entre meia decisão e meio consentimento. Vão entrar, sem receio, na escuridão. Onde hoje, tanto tempo passado, ainda estão.

[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i ]

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19 agosto 2013

Eva na praia




Estou na praia há quatro dias. Na praia, esta clausura, este retiro de silêncio. De acordo com as unidades de tempo dos anos 60 do último século, estes quatro dias agora equivalem a um mês de praia de então. Ao mês inteiro. Agosto, claro. A temporada. Nos primeiros dias não se ia à praia. Brincava-se no parque, debaixo das árvores centenárias, à sombra do misterioso palacete encerrado. Embora ainda não houvesse o cancro da pele, não se podia estar na praia da uma da tarde até depois do lanche. A menos que uma espanhola mais divertida nos cooptasse para um grupo, o mês decorria sem surpresas, das barracas dos camponeses às filas de chapéus, onde as mulheres da classe média ensaiavam uns biquínis remotamente ousados. Entre o jogo do prego e as corridas das cadeiras, ou dos sacos, escoavam, infindáveis, os minutos. Nunca mais chegava a hora do banho, esse choque térmico redentor, com um banheiro apitando e outro remando sem parar, mantendo o bote branco da capitania na zona limite dos trinta metros, a partir da qual era mar alto.
Embora continue a não se passar nada, quatro dias de praia concentram hoje o aborrecimento extenuante de um mês de então. Há é pouca gente para dar por isso, como disse, do binómio de Newton, Álvaro de Campos.
O mar parece não ter ondas nem marés. É um mar que lembra uma fotografia do mar. Como nos lagos e nas piscinas de Miami, as pessoas, transformadas por raros dias em veraneantes, entram no mar, esticando o pescoço e o queixo, olhando para o Indefinido, enormes e imóveis como as figuras da “Grande Jatte” de Georges Seurat, submersas, o volante dentro delas quase parado.
Conheço-as. As crianças que chegaram do Norte do país, com a pele muito branca mordida pelos insectos, estão a ser educadas por pais com a calvície precoce dos almoços de trabalho e do excesso de reuniões. Os pais divorciados são os seres mais tristes deste mundo. Os filhos mais velhos lêem Dan Brown em inglês e estão zangados. Os mais novos querem brincar, a mais inesperada das actividades, cheia de perigo, ruído, exigências físicas e expectativas de participação familiar. E eles, os pais divorciados, suspiram pelo fim daqueles dias inúteis, para regressarem aos almoços de trabalho e às reuniões. 
À minha frente, o homem que parece um antigo guarda-redes do Benfica, e deve ser um antigo guarda-redes do Benfica, fala com a mulher das empresas que fecharam e da audiência inevitável com o director de finanças. E ela, que tem o corpo fantástico das mulheres dos antigos guarda-redes do Benfica, dá-lhe instruções detalhadas, repetidas, aconselhando-o sempre a “não deixar passar o Verão”.
“Pai, porque é que nós viemos no sábado e voltamos no sábado?”
“Porque foi assim que a mãe escolheu.”
O rapazinho, que “é muito absorvente”, “exige muita atenção”, está fascinado pelos sábados, o dia em que tudo começa e acaba, para onde o tempo escorre entre as suas mãos pequeninas. Repete a pergunta. E o pai responde e parece ficar ainda mais triste. Olhar para ele, mesmo obliquamente, é doloroso. Desvio os olhos, com medo que ele rompa em soluços, mas fui tocado pelo mal que o atormenta, a tristeza dos pais divorciados, que ainda não “refizeram a vida”, ou, sendo homens, estão agora casados com mulheres como a Julie Delpy de “Antes da Meia Noite”, de lábios franzidos, decaimento do desejo conjugal e retórica culpabilizante, parecendo estar sempre a dizer “tu-nem-ao-menos”, “ainda se”, “nem-te-lembraste-de”, “agora-tu-já-não”.
Passa a garota que vende bolas de Berlim.
“Olha a bola. A bolinha de Berlim.”
Ela diz “a bola” com inesperada velocidade e em tom decrescente, como se pretendesse assustar as crianças ou criar uma expectativa para o que vem a seguir. E depois de uma pausa entoa “...a bolinha de Beeerliiiim”. Chama-se Eva. As bolas são de creme. Sem creme. E chocolate. Este é o seu segundo ano de praia. O ano passado ela dizia apenas “Olha a bola!” Depois notou que as crianças gostavam quando cantava. Começa às dez, quando a carga é de cerca de 12 quilos, na caixa de esferovite oferecida pelo supermercado da zona. Almoça às duas, a correia já a esfolar os ombros assimétricos. E acaba às sete. Vende-se bem ao fim da tarde, cada bolinha com um guardanapo e um saco de plástico. Faz o percurso entre a praia do Presidente e a praia dos Secos. Tem concorrência poderosa. Uma mulher que optou pelo pregão informativo, “Creme. Sem creme. Chó-có-lá”; o rapaz da “Bola, bó-li-ná”; o candongueiro que toca “Für Elise” no telemóvel amplificado; o bando dos vendedores de toalhas de praia; e ainda outro gigante triste, o génio de Aladino, vindo directamente da lamparina, de repente à nossa frente com um tabuleiro de óculos de sol, não vendendo nada e não parecendo mostrar o menor interesse em vender, como se o seu objectivo fosse apenas aparecer e desaparecer em silêncio, mostrando os óculos no tabuleiro e a sua infinita melancolia.
Passa Eva. Tem uma cara linda de menina, o corpo mal se percebe entre a carga, mas é magrinha até às ancas e depois as pernas vão-se enterrando, à medida que avança. E é como se agora, um dia a meio deste segundo ano, justamente quando o seu canto começou a ser entoado pelas crianças, os pés se tivessem desfeito na areia da praia dos Secos.

“O Mar”, John Banville, ed . ASA, 2006


[ Luís Januário, crónica publicada no Jornal i ]

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11 agosto 2013

A propriedade é o roubo. A mercadoria, o veneno.






O Bloco de Esquerda (BE) afixou outdoors com os dizeres:
“Tudo o que foi roubado /Tem de ser devolvido”.

Ninguém, que eu ouvisse, comentou esta afirmação. O que não quer dizer nada. Não  me lembro de ouvir comentar outdoors, que apesar disso  continuam a ser afixados.
Talvez os outdoors sejam como os sabores difíceis e se destinem a uma apreciação íntima, à décima primeira passagem, quando uma leitura deste tipo se torna possível, um pouco antes de começarem a fazer parte da paisagem familiar. Primeiro, irritamo-nos com o facto de sermos o destinatário de uma acção de propaganda, motivada pela necessidade das forças políticas marcarem territórios e assegurarem a sua permanência. Depois, com os conteúdos não se distinguirem dos que publicitam produtos de consumo supérfluo. Mas este slogan, se não for lido como um enunciado genérico, susceptível de agradar a todos excepto aos ladrões relapsos, é verdadeiramente intrigante:

“Tudo o que foi roubado”. Repare-se no Tudo? O lucro das novidades financeiras que permitiu que o PR tivesse transformado cada euro das suas parcas economias em 2,5 euros. Os swaps dos negócios de obscuros contornos. As luvas dos grandes negócios do Estado, dos submarinos às obras públicas, das pontes às auto-estradas. O desvio de dinheiros públicos do SNS para os investimentos privados na saúde. A lista não tem fim. Nem um Estado inspirado em Saint Just conseguiria arrolar a lista de roubos, desvios, ganhos ilícitos, operações ilegais ou desenhadas para iludir a lei; identificar os ladrões; proceder ao seu julgamento e condenar os culpados. Provavelmente, neste processo, o Estado modificar-se-ia progressivamente, transformando-se numa ditadura guiada por objectivos fascinantes.
Mas, e sendo o BE um partido de ideologia e história, a formulação

“Tudo o que foi roubado”,
não pode ser inocente.

Foi o velho Proudhon quem, nos escritos de 1840, disse a célebre frase
“A propriedade é o roubo”,

querendo com isso significar que o roubo não consiste nas operações fraudulentas com que alguns deram nas vistas, mas é congenial à propriedade. E que esta, embrulhada com os direitos fundamentais trazidos pelas luzes, vinha como um veneno letal.

Uma leitura socialista, anarquista, do slogan seria forçosamente:
 “Tudo o que foi roubado”,

ou seja
“A propriedade” (que é o roubo em si, o primeiro roubo, o início de todos os roubos)

“Tem de ser devolvida”.

“A propriedade/ Tem de ser devolvida”.
É uma das leituras legítimas do outdoor do BE, o que é contraditório com a clareza que procura atingir na política. Não é crível que um partido que não tem no programa a abolição da propriedade, insinue esse objectivo num slogan eleitoral. Embora slogan eleitoral seja isso - dizer em poucas palavras - e mesmo aceitando que o outdoor se inscreve no tempo do programa mínimo, do mínimo denominador comum, ele deve ter um enunciado que seja reconhecido como pertencendo a uma determinada força política.

Analisemos agora o segundo termo:  “Tem de ser devolvido”.
Devolução, no Aurélio, quer dizer “ Restituição ao primeiro proprietário”.

A palavra escolhida foi “devolvido”. Devolver é dar de volta, restituir ao anterior proprietário. O proprietário, para Proudhon , pode ser a comunidade. Roubaram os terrenos baldios, as florestas públicas, os serviços públicos de transporte, produção e distribuição de energia, saúde. Depois da terra - e isto era inacreditável no século XIX- roubaram a água das nascentes. E como diz a palavra de ordem: têm de devolver.
Os revolucionários do século XIX diziam que tinham de expropriar, ou de confiscar. Os revolucionários expropriam. O sujeito desta frase é “os revolucionários”. Hoje, no século XXI, diz-se devolver. Os ladrões devolvem. O sujeito desta frase é “os ladrões”, que recebem uma intimação e restituem o que roubaram.

Na formulação clássica:
“A propriedade é o roubo/ Tem de ser confiscada”.

De clareza meridiana, mas fora do alcance de qualquer dos partidos actuais. Bem diferente da versão bloquista, encantadoramente ingénua, onde um cortejo de arrependidos, acordado pelas trompas dos anjos, se levanta de Cabo Verde a Belém, do Brasil aos Conselhos de Administração, dos gabinetes de advogados ao Parlamento, da Ongoing ao governo, e vem entregar o capital que fraudulentamente desviou.
Anselm Jappe, na esteira dos situacionistas e de Robert Kurz, acha que esta visão  dos capitalistas malvados ou, nas suas palavras, da aliança entre os banqueiros e os políticos corruptos é simplista. Que a crise actual e a própria natureza do capitalismo, a sua incrível capacidade destruidora, as suas contradições, resultam da economia se ter separado da sociedade e de ter colocado a sociedade ao seu serviço. E a raiz desse comportamento esquizofrénico e suicida está na essência mesmo da economia mercantil, e não pode ser alterado substancialmente pela melhor repartição, pela regulação, pelo Estado social, nem, pasme-se, pela alteração da propriedade dos meios de produção. A mercadoria, o trabalho, a formação do valor têm de ser submetidos a uma crítica lúcida se quisermos compreender e modificar “ a mercadorização” de todos os aspectos da vida.
 
Apontar o dedo aos ladrões satisfaz as turbas e a necessidade dos humanos em encontrar e punir os culpados. Mas teríamos de ir mais longe, e, continuando a desprezar os que roubaram, procurar ver além dos outdoors.


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04 agosto 2013

Vazio. Fora do Vazio.



 
 
“Promessa de Verão: falar-te apenas da água e da luz”
(Susana Figueiredo, algures perto de Lisboa)
 
A factura da luz é o documento mais aviltante que possuis. Juntando o teu nome à bandeira estilizada da China. O símbolo nacional do ocupante em vermelho sanguíneo, em cima mais fluído, em baixo coagulado. Serviço Universal, império universal. O teu nome completo, ao lado do António Mexia e do Pina Moura. E tu a pagares. Em euros. A pagar, Serviço Universal, acreditando que a leitura do contador são aqueles nove dígitos, como um número gravado na pele do antebraço, o valor a debitar, o período de facturação. O pulha cobra-te por débito directo. Tu autorizaste. É tua a autorização do débito em conta, a ADC 00456758743. Foste tu quem contratou a potência: 13,8kVA. Tu, que nem sabes o que é um VA. Tu, avesso a todos os contratos. Que detestas o Pina Moura e os seus amigos, velhos e novos e velhos-velhos e novos-novos.  Que fraco devias tu estar para te renderes. Para quebrar. Para assinar. Dar os dados, permitir a leitura do contador, ou pior, a estimativa, ou comunicar a leitura, para tal usando a aplicação EDP Mobile ou o 800 500 500. Como desceste tão baixo ao ponto de lhes teres dado a ADC aqui reproduzida. Ao Pina e ao Mexia. Ao Mexia e ao Pina. Sucessivamente. Uma humilhação atrás da outra. Primeiro eles apoderaram-se do carvão. E tu não disseste nada. Era só o carvão. Quinze por cento. Pré histórico. Arqueologia industrial. Que falta faz o carvão. Fiquem com o carvão todo e as chamas e a fuligem e a cinza. Depois a cogeração fóssil. Sabes lá o que é isso. Cogeração. Geração do cu, dizes. Geração da derrota, da desistência, da falta de comparência. Da cultura inútil. Da contracultura ridícula. Cogeração fóssil. Fóssil é o teu avô. Depois as eólicas. Deixámos. São só as cumeadas, a linha do horizonte, uma negociata mais. Deixem-nos consumirem-se uns aos outros, nas negociatas . Interessa-me lá. Quarenta por cento. Pode lá ser 40%. Nem com os moinhos todos alinhados, nem com um ajuntamento de Parques eólicos, nem com o suão e o siroco, nem com o vento que sopra de levante, nem com a nortada privatizada, nem com um zumbido que nos fizesse a todos ainda mais surdos. Outras renováveis 10%. Pois, afinal modernizaram-se. Com os chineses? Para os chineses, mas antes de venderem aos chineses. Assim eles já tinham a papinha feita. Mas isso é bom, não é? Renováveis. Não gastam nada. Quando os pusermos a andar está tudo aí, ainda. Sim um dia o povo acorda, o povo, fonte da soberania, o povo, a comunidade eleitora , acorda estremunhado e vê-se a si próprio , as grilhetas, as mais valias, os produtos tóxicos, as swaps, o estado da natureza, os cargueiros a rebentar de energias renováveis e a despejar nas praias a abundância cólica.  E nesse dia puro, feito de luz, os humanos vão poder tudo recomeçar. Hídricas 10%, mas não é mini hídricas, pois não? Essa nós ganhámos. O que nós lutámos. Mini lutas para impedir as mini hídricas. Descemos o Bestança e o Sabor, o Côa e sei lá que mais. Mas mini hídricas, não. Rios de cristal, trutas a saltar, oxigénio, vinhas nas encostas, desenhos neolíticos nas rochas. Essa ganhámos. Dez por cento? É impossível. São então donos da energia. Da água e do vento. Do carvão e do fóssil. Donos das fontes de energia. É tudo 100% deles. Para todo o sempre. Até pagar a dívida. Até pagar os juros da dívida. Até pagar os juros da dívida que continuais a contrair, que bem vos vejo a consumir mais do que devíeis, mas menos do que prevíramos, obesos, drogados pelos produtos colaterais da vossa comida tóxica, insolventes, incorrigíveis, culpados, devedores, como os escravos das plantações de cana de açúcar, inchando da dívida e da cachaça.  Até depois do período do fim da decomposição do capitalismo. Até o Pina ser fóssil e o Mexia ser só fóssil ou combustível fóssil ou mera luz nova que vem. Até os patrões chineses, os camaradas do comunismo monopolista de estado, serem só um exército como aquele do Império do Meio que estão sempre a descobrir intacto na china, em terracota ou argila ou em grafite, combustível fóssil. Mesmo depois de só haver energia solar serão eles os donos do sol, fonte de energia, e hão-de cobrar-te o Total Faturado incluindo a Taxa de Exploração DGEG- eh pá tu é que pagas a taxa de exploração? DGEG? E o Imposto Especial de Consumo? São só 55 cêntimos, não devias ser fariseu, hipócrita, fuinha, unhas-de-fome, até por 55 cêntimos reclamas, nem 55 cêntimos estás disposto a dar especialmente, e em letras tão pequeninas, há-de ser para um serviço público. E o IVA a 23%, os valores indicados não incluem IVA. E o Aceso às Redes, 2,56€, e é por ser para ti, independente do comercializador, isto é, do Mexia, dos chineses. Quer dizer que eles são inocentes, são obrigados a facturar isto, pá. Querias acesso às redes à borla. Queres tudo, pá. Já te viste a aceder às redes como quem acede às maçãs, ou à praia, ou aos financiamentos. Está tudo? Tens pressa? Lê até ao fim. Extinguiram as tarifas reguladas, percebes? Acabou-se a mama. Foste tu que quiseste. Não estavas atento? Não estava no programa? Não te avisaram? Avisaram tudo. Agora tens de optar por um comercializador em mercado. Estás a ver que podes optar. Pagas o acesso aos comercializadores mas podes optar. Bem, não te esqueças dos custos do interesse económico geral, os CIEG, estás a ver, 1,41€, quase nada, o interesse geral tem poucos custos, embora tu é que alombes com eles. Podes optar, caramba. Queres que te façam a leitura no vazio ou fora do vazio. Queres ponta ou cheias?

Conferências de Lisboa, Anselm Jappe, Antígona 2013
 


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