24 fevereiro 2012

O novo Paradigma

Publicado no jornal i a 18 de fevereiro. O próximo texto será publicado no sábado 25 de fevereiro.



Baselitz


No fim-de-semana passado caminhei perto de Sever de Vouga. O trajecto era o mesmo de há uns anos. Demasiados, dei-me conta. O acesso ao ponto de referência é agora fácil. A queda de água está no centro de um pequeno parque de merendas, deserto nesta manhã fria de Fevereiro. Há por todo o lado marcações de provas de todo o terreno. Numa curva, alguém de bom humor montou uma instalação com um sofá, uma televisão e um frigorífico.

Os eucaliptos e as acácias descem até ao rio e invadem tudo. Este país onde caminhamos é agora, sem transição, rua da estrada ou selva de mimosas. A povoação mineira, que conheci no primeiro estádio de abandono e pilhagem, é já uma discreta ruína. Algumas paredes espectrais, nenhum telhado. Os silvados impedem o acesso ao rio. Numa volta do caminho, a surpresa de uma álea de coníferas e depois, incólume, a casa do engenheiro.

Tem as janelas entaipadas mas resiste, como as japoneiras e os muretes de buxo. O chão desta zona está atapetado de pétalas e de pequenas pinhas. Foi aí que parei para me lembrar de ti. Mas por mais que me tivesse esforçado não ouvi o teu riso, o brilho dos teus dentes nem a voz com sotaque de Barcelos.

Mudou o paradigma, pensei. Agora são mimosas, escombros, estradões. Haverá ainda um tempo para a morte das camélias ao abraço mortal dos invasores. Olhei para cima. Os troncos imponentes dos pinheiros da encosta estão enfaixados com trepadeiras, como varizes disformes, descendo das copas.

Lembrei-me da frase de Max Planck: o paradigma não muda por os cientistas velhos mudarem de opinião; o paradigma muda porque os cientistas velhos morrem. Este mundo morreu. Caminho sobre os seus destroços como um sobrevivente e o que piso é uma terra sem préstimo, espoliada do chumbo argentífero. Não me lembro sequer da mulher com quem descobri estes trilhos. Fonte, arbusto de sangue, cabras da urze. Os poemas que líamos, as palavras que usávamos são como os sapatos da época. Sal, resina, harpa. Se por acaso os encontramos, percebemos facilmente que serviam para outros passos. Para outro chão, outra humidade, outra emoção, outra ortografia. É preciso dizer esta frase terrível: já não é o tempo da menstruação.

O novo paradigma vem até aqui de 4x4. Ruidoso, enquanto houver gasolina e revistas da modalidade, com fitas e bandeiras que assinalam os percursos. Rápido e poluente. Como um Paris-Dakar do vale do Vouga, sem ninguém para a fotografia.

Ando mais um pouco e encontro um pastor. Afinal ainda há cabras ou bichos como cabras. Comem as ervas recolhidas numa padiola, fogem de mim mas voltam, curiosas. Um dos cabritos tem cornos pequenos, afiados. O pastor diz-me qualquer coisa confusa. Vai cortar os cornos do animal ou vai comê-lo em breve, não consigo entender. Seja como for, é perigoso nascer com cornos entre animais de manjedoura. Por mais esforçado que seja o pastor, os cornos do cabrito podem magoar os outros comensais.

Este pastor foi cozinheiro. Trabalhou para o engenheiro, já depois do fecho das minas. Cozinhava para ele e para os amigos dele, quando os havia. Cozinhava para o criado preto. E depois para o criado branco, na prisão, quando ele enganou o engenheiro e se desgraçou. Frangos tenrinhos e outros pitéus para a senhora do engenheiro, quando ela estava, que era do Porto e não gostava destas paragens, acostumada à cidade e a outras mordomias. O engenheiro deixou-se ficar por aí após o fecho da mina. Primeiro esperando ordens da administração das minas, depois trabalhando para a Companhia da Celulose. Foi ele quem plantou os primeiros eucaliptos. Um homem da transição. Isto o pastor não diz. Mas sabe. O engenheiro, na casa das camélias, no alto da colina, com a aldeia mineira em baixo como um Stalag, foi um construtor de paisagens, um homem encavalitado em três épocas: o Ultramar, o chumbo e a celulose. O pastor encarna uma evolução regressiva. Mas neste novo paradigma, depois da velocidade, ele é que ficou para contar.

Créditos: Max Planck foi Prémio Nobel da Física no princípio do século xx.

Herberto Helder ensinou a falar os tresloucados dos anos 60/70. De colher na boca

Etiquetas:

17 fevereiro 2012

My Panton-Valentine

Publicada no sábado 11 de fevereiro no jornal i. A crónica desta semana é sobre os cornos do cabrito .





Estou sentado na mesa que preside a uma reunião médica no anfiteatro de um hospital. O lugar é antiquado e desconfortável, com uma lotação de 200 pessoas. Tem um corredor central e dois laterais, um palco demasiado elevado e uma mesa onde, em cursos deste tipo, a organização costuma colocar os nomes dos conferencistas e do moderador, uma bandeira da organização e, antes dos cortes, uma coroa de flores, geralmente fúnebre.
À minha frente, na assistência, os participantes de uma importante reunião de formação, creditada pelas sociedades científicas da especialidade.
Nas duas filas da frente sentam-se os chefes de serviço e os especialistas mais antigos. Na primeira fila, do lado direito, os convidados estrangeiros e os organizadores de estatuto mais elevado. Os responsáveis mais jovens posicionam-se depois da terceira fila, junto à parede. Em lugares mais interiores da mesma fila estão dois internos do serviço anfitrião. No fundo da sala há médicos mais jovens de outros hospitais. Nas sessões da tarde é permitida a entrada a internos do hospital e do ano comum, o ano de residência após a licenciatura e que precede a formação especializada. Como provavelmente não se inscreveram, sentam-se nas escadas de acesso ou ficam de pé, junto às paredes.

Kathryn Montgomery, num estudo observacional, chamou a esta distribuição a exibição da hierarquia e caracterizou-a do seguinte modo:
1. Os professores sentam-se à frente e os estudantes atrás. No meio sentam-se os internos e os especialistas. Ela chamou a este esquema a distribuição tripartida, hierárquica, da frente para trás.
2. Algumas excepções reforçam o papel da hierarquia: sentar-se fora da fila por exemplo. Ninguém o faz, num lugar acima do seu estatuto, se não for convidado ou não for apresentar um caso.
3. Variações: a posição lateral é um gradiente secundário de poder. Um lugar de coxia é mais importante que um lugar interior. Um lugar de parede, sobretudo se escolhido antes da sala encher, é símbolo de humildade. É aí que se sentam os mais cansados, que fizeram noite ou não querem ser notados.
4. O tempo de permanência na firma altera o plano e esbate as regras.

Em 1887 André Brouillet pintou o quadro Uma aula clínica na Salpêtrière que hoje pode ser visto na entrada do Museu da História de Medicina em Paris . A distribuição é semelhante. Na primeira fila, ligeiramente destacado, está Gilles de la Tourette. Ao lado, Bourneville , Parinaud, Pierre Marie . Outros médicos e curiosos estão de pé, junto à parede. Só três mulheres: Blanche Wittman em transe hipnótico, apoiada por Babinski, no verdadeiro centro da composição, uma jovem auxiliar de enfermagem e uma outra mulher, a discreta Marguerite Bottard que se notabilizaria como paladina da enfermagem laica e a quem Gilles de la Tourette dedicaria uma memória.

No estudo de Kathryn Montgomery o género tem pouco relevo. E hoje, neste anfiteatro, também. Tudo o que foi escrito no masculino poderia ter sido no feminino. De facto a maior parte dos participantes são mulheres. Mulheres jovens, sem idade e de meia idade. Há um ano, frequentando as aulas do sexto ano médico, algumas destas mulheres eram completamente desinteressantes. Cabelos mal lavados, farda de estudante, pele cansada de noites sem causa - nem boémia nem estudo intensivo. Agora têm óculos geek chic, ombros decotados, saias curtas com leggings pretos, sapatos de tacão altíssimo. Em poucos meses transitaram do modo colegial deslavado para o de mulheres fatais ou pesopluma. Às nove da manhã, hora em que é suposto só haver ciência e fome de torradas, vi uma franja que faria a inveja das preciosas e pestanas postiças de tamanho XL. Há meia dúzia de homens na sala. Não têm nada de particular. Para a investigação sociológica a que neste instante me dedico não ocupam nenhum lugar de relevo. Estão dispostos pela sala e distinguem-se pelo brilho das fontes luzidias. Não merecem menção. Agora uma mulher entra na sala e desce as escadas centrais. Como os degraus são longos ela tem de dar um passo intermédio mais curto e isso quebra-lhe o corpo e fá-la avançar com a marcha quebrada dos modelos nas passerelles, exagerando muito a proeminência das ancas. Noutra circunstância, uma entrada assim numa reunião dedicada às malfeitorias da toxina Panton-Valentine leucocidina do S. aureus, teria feito história. Nesta cidade das mulheres, neste gineceu enlouquecido, nada será notado. Num mundo sem McGarrigle não há espaço para Angelica Pabst nem para Helen Reed. A dominância de género é tão esmagadora que os raros homens se habituaram a lavabos cor de rosa e a folhear a edição espanhola da Vanity Fair . A mulher continua a descer a escada enquanto eu penso que aquele deve ser o trend pesopluma da Primavera-Verão 2012 e que Panton -Valentine é um nome lindo para uma tinta de parede.

10 fevereiro 2012


Herbert Bayer

Patriota anónimo, já sem língua para trincar.

Etiquetas:

09 fevereiro 2012

Minijobs a 60 cêntimos/hora



"São já cerca de sete milhões os empregados em “minijobs” na Alemanha, com remunerações inferiores a 60 cêntimos à hora... "

lido aqui

Etiquetas:

08 fevereiro 2012

O frio


Charlotte Perriand

Crónica publicada no jornal i no sábado 4 de fevereiro de 2012. A próxima crónica doi será publicada a 11 de fevereiro, sábado.



Este Inverno enfrentámos o frio de peito aberto. Nem lareira, nem aquecimento central. Como vivemos num antigo presbitério, o ar frio da serra entra pelas frinchas e varre os cantos da casa. Conheço-lhe as voltas. O corredor, a sala, os quartos. O sítio mais protegido da casa é a cozinha. O fogão aquece o aposento e podemos comer, beber e conversar até recolher aos quartos. Já não há crianças pequenas. Mas nunca vi crianças a queixarem-se do frio. Como a densidade dos receptores do frio é maior na ponta do nariz, talvez as crianças não sejam especialmente sensíveis. Os mais novos da casa são agora adolescentes. Usam T shirts. Uma, acima dos 18 graus. Duas, entre os 18 e os 8. E abaixo dos 8 deitamo-nos todos, seja qual for a hora. E os cães connosco. Nesses dias o burrinho Jammes tem autorização para entrar e dormir na saleta. O burrinho Jammes é o mais popular dos membros da nossa família. Quando vamos ao mercado da vila ele precede-nos. Como escolhemos sempre o mesmo, as vendedoras preparam os produtos à sua chegada. Só compramos queijo, leite e legumes que não se dêem nas hortas dos vizinhos, onde as curgetes crescem particularmente bem. À terça feira há peixe fresco. Os mais novos sabem recolher cogumelos, cominhos, hortelã, manjericão. De vez em quando apanhamos as castanhas que atapetam as encostas.
Lavamo-nos aos pedaços. Agora acabaram-se os duches. Este inverno a Morsa e a Raposa seguiram o exemplo das mulheres e todas usam os cabelos curtos .
O frio é bom, revigorante.
— O frio faz-nos sentir vivos— dizem os mais velhos. No verão o sol fica parado no meio-dia e se algo acontece é devagar. Nenhuma revolução se fez no verão. O frio pára a decomposição dos corpos, seca as gorduras, limpa o ar das poeiras e dos insectos. O frio é rigoroso. No frio as mulheres são mais altas, mais ásperas e os amantes mais esforçados e inventivos. As crianças crescem mais nos meses frios, concentram-se melhor, sobretudo longe do mar e das cidades marítimas.
O frio repõe a ordem que o verão perturbara, põe fim à estouvada exuberância do verão, apaga os fogos, leva a água às fontes e gela os lameiros.
O calor acelera a decomposição dos corpos. Os homens andam descalços, de calções. Só o frio dá dignidade, gravitas, acutilância. Não há imobilidade com o frio. Aqui todos ajudamos: a dar comida aos animais, durante os cozinhados, a pôr a mesa, lavar a louça e arrumar a cozinha, tirar as mantas dos armários. Se algum lê alto um excerto de livro fá-lo em movimento, da cozinha para a sala e da sala para a cozinha. E quase todos o acompanham ou, quando são muitos, balanceiam o corpo de um pé para o outro. Esta leitura acompanhada, peripatética, é o nosso maior divertimento, o calor do nosso serão. Descobrimos que em movimento se lê melhor, se ouve melhor, se pensa melhor. É assim que os mais novos preparam os testes, os do meio as intervenções de maior responsabilidade e os mais velhos põem em comum as suas leituras. Percebemos que alguns autores, mesmo consagrados, não resistem à leitura peripatética, enquanto outros aguentam perfeitamente o frio. A decana da família tem agora 93 anos e não suporta tanta correria. De forma que se senta na soleira da cozinha e à medida que nos afastamos dela temos de aumentar a altura da voz para ter a certeza de ser ouvidos. Esta semana, a Raposa leu o poema Visto do Alto, de Wislawa Szymborska, de quem todos gostamos . É um poema sobre um besouro que está morto na estrada do campo. A certa altura a Raposa leu:

E eis aqui este besouro morto no caminho,
num estado indeplorável, luzindo a um ínfimo sol.

Apreciámos. Talvez porque falasse de caminhos que são como os que levam ao presbitério. Ou porque um sol, mesmo ínfimo, brilhava no poema. Foi então que o primo Fuinha exclamou: — Indeplorável! Indeplorável quê? O que é um estado indeplorável ?
Há várias maneiras de gostar de um poema. Uma delas é simpatizar com a Szymborska e lê-la à luz dessa simpatia. A outra é gostar da Raposa e do modo como ela lê. Outra ainda é estar apaixonado, como o Mocho, que gosta de ouvir o Noiserv e achou que o poema lhe lembrava uma canção do Noiserv. E há o primo Fuinha, atento aos pormenores, o único que seria capaz de iniciar uma discussão sobre o estado indeplorável do besouro morto no caminho do campo.
Durou até à hora de deitar. Quase todos deram a sua opinião. A Raposa disse que traduções daquelas eram indecorosas, indefensáveis e a enchiam de ansiosidade. e houve quem investigasse e afirmasse que indeplorável se usava muito agora, pelos que gostam de ler no original e que era afinal a tradução literal do polaco nieoplakanyn.
Para mim a discussão acabara antes.
Vi o Mocho sentar-se na penumbra da sala. Pegar num caderno. E começar a escrever febrilmente. Não lhe distinguia a cara. Só as mãos, o caderno, o tronco. O Mocho tremia. De vez em quando um calafrio percorria-lhe o corpo e dissipava-se nas mãos. Ele parava de escrever até que o tremor o deixasse recomeçar. Aproximei-me, segurei-lhe as mãos geladas. Ele libertou-as para fechar o caderno - o Mocho escreve às escondidas.
— Em que estado estás, Mochinho — disse-lhe . —Vai-te deitar.
— É só do frio, pai — respondeu-me.

01 fevereiro 2012

O décimo primeiro


foto de Dr. Gica em pescada nº6



publicado no jornal i de 17/01/2012. As crónicas nesse jornal são agora semanais, aos sábados.


Nas férias do Natal, um grupo do décimo primeiro decidiu organizar um programa alargado de fim de ano. Eram oito, quatro rapazes e quatro raparigas. Instalaram-se num andar da Marginal, um desses investimentos que o pai de um deles fizera há anos, quando os miúdos eram mais pequenos e o Verão na praia de E. lhes parecia um programa. Depois as crianças cresceram e o vento soprou mais forte, a temperatura das águas desceu, a noite de E. ficou uma pasmaceira. A casa está quase sempre fechada exceto quando vêm os miúdos. Chegam na sexta feira, saem para a noite, dormem todo o dia, acordam famintos, vão comer qualquer coisa aos restaurantes da Marginal, depois voltam para jogar, trocar sms com outros amigos mais interessantes, actualizar o status no facebook e preparar a noite seguinte. A casa fica tão suja que é preciso mandar uma empresa de limpezas. Eles são repreendidos, as mães trocam telefonemas, entre a preocupação e o orgulho. São todos bons alunos num Colégio que disputa os primeiros lugares do ranking. Partilham a marca dos ténis, as calças justas, os andróides, o corte de cabelo, o roubo ritual dos carros dos pais, o desconhecimento aprofundado das drogas, a ideia de que o desemprego é para os outros e de que as suas famílias serão poupadas.
No dia 28 de Dezembro a noite de fim do ano parecia um objetivo longínquo. Anteciparam a festa. Compraram comida num take away, basicamente frango e batatas fritas. E álcool: as meninas fizeram sangria, beberam três jarros num instante, riram-se muito, disseram a sede que esta merda dá e foram as primeiras a vomitar. Os rapazes trouxeram quatro grades de cerveja e duas garrafas de vodka. Em menos de duas horas beberam tudo. Não sabem dizer porque é que beberam tão depressa. Porque tinham combinado uma sessão de sexo em grupo e estavam nervosos. Porque quando se está assim as coisas parecem acelerar. Porque tinham experimentado um produto novo. A coisa nova que eles tomaram, oral e nasal, chama-se agora R., no código desta tribo e um deles sabia onde se vendia. Na praia de E. e na cidade onde vivem.
O Tiago tem um azar danado. Não consegue vomitar. Vomitaram todos. Todos e todas. Nas retretes, nas banheiras, no chão da cozinha e nos lençóis da cama. Antes do sexo em grupo vomitaram em grupo. As meninas vomitaram a sangria. Os rapazes a cerveja. E as batatas fritas, em conjunto. A Sancha começou a chorar e disse sinto-me a morrer, quero telefonar aos pais, sinto-me a morrer. Alem disso achava que R. devia estar falsificado ou ter efeitos adversos. Tinha as veias todas inchadas e azuis. Uma das meninas disse à Sancha que a proibia, estás a ouvir, proíbo-te de telefonar a quem quer que seja. E que se calasse com essa dos efeitos adversos. Se se sentia a morrer era bom, tinha é que curtir essa sensação que não é todos os dias que uma pessoa pode sentir-se a morrer. E as veias, claro que são azuis, de que cor é que querias ter as veias. A menina que falou assim é a Muriel, uma líder com duas tatuagens, um piercing lingual aplicado em Dublin no verão e uma grande experiência em bloom. Foi ela quem inalou primeiro e disse a dose para os principiantes. O problema é que os principiantes não quiseram confessar que era uma estreia e arrearam pela medida alta.
Parece que afinal se divertiram muito, de manhã ainda dançaram na praia e tinham tanta sede que eram capazes de beber a água suja das garrafas abandonadas no areal.
Faltava o Tiago.
Mas faltava tanta coisa que o Tiago não fazia falta nenhuma. Faltaram os preservativos ao Suss, faltou saber quem pinou com quem, faltou perceber porque é que a Sancha tem um olho negro e sangra do lábio. O Tiago está a dormir, qual é o problema?
Dormiu todo o dia. E continuou a dormir durante a noite. Não acordou quando lhe vieram perguntar se tinha fome, é uma ressaca má, explicou a Muriel, e atirou-lhe para cima com mais um cobertor. Na verdade acordava a espaços, mandava sms aos pais, isto está bué de divertido beijinhos gosto muito de ti mãe. Mas de cada vez que abria os olhos sentia a cabeça vazia. Como se o cérebro tivesse fugido. Alguma coisa essencial tinha abandonado o seu corpo. Se não fosse uma vergonha gostava de ter a mãe ali, para lhe soprar nos olhos e lhe dizer que estava vivo. Quando adormece no sofá da sala, lá em casa, tem por vezes, esta sensação ao despertar. Não saber se está acordado, onde está, se está vivo. Mas dura um segundo e passa. Agora não. Agora está morto, ou doente para sempre, doente mental como o primo Tansas que ainda por cima é alcoólico.
Ficou assim quatro dias. O primeiro e segundo dia do ano novo, na casa da praia, depois em casa dos pais e finalmente no hospital. Até que numa manhã lhe veio à cabeça, no meio de tanta angústia, que o que estava a sentir talvez não fosse a loucura mas “a responsabilidade de viver”. E serenou.

Etiquetas: