31 outubro 2003

Perdido

Estou perdido nos céus entre as arábias e a galiza e não sei do porteiro. No elevador vim com um que se reclama a divisa “trabalha galego”, no corredor acabei de cumprimentar (à pressa) outros hiper atarefados, tudo moiros de trabalho, e aqui não encontro o gabinete do que é Salvador..

André Bonirre

30 outubro 2003

Que fale

O Sol está a bombardear a Terra com tempestades magnéticas gigantescas. Ondas de protões varrem os continentes, despejadas por vómitos da nossa pequena estrela convulsiva. Avisaram os pilotos de aviões e os bombeiros da califórnia. Parece que o fenómeno se traduz em gigantescas auroras boreais que podem ser vistas no Alasca e em outros sítios desérticos da Ásia.
Perturba-me esta exuberância de energia para nada, este excesso dos céus sem espectadores.
Se alguém perceber o que isto quer dizer- tu que acreditas que a morte nos puxa para cima, que não fique calado.

29 outubro 2003

as palavras

é preciso que elas percorram as veias, deixamo-nos injectar nos pontos
mais dolorosos do nosso corpo, esperar, aguardar o livre curso da
infecção, do tempo, dos pensamentos meio devagar, deixar alastrar o
estado febril, com sorte surpreender numa malha cristalina e sólida o
seu registo, com sorte o tempo restaurará a temperatura para o valor
normalizado, com sorte um pequeno cubo de arestas afiadas conterá a
infecção dois milímetros dentro da pele, as arestas afiadas prontas a
romper novos tecidos em plena nova calma, o cubo de novo a escorrer, a
engrossar a corrente negra que me prega ao chão, mas nunca menos do
que isso.

PC

A poesia vai acabar

Em S. Mamede do Coronado, à Trofa
ao volante do velho Ford
no autocarro da Carris
na vindima do Deanteiro
nas reuniões intercalares

no tão difícil equilíbrio
nas manhãs das que perguntam à vida:
podemos ser felizes?

no irrespirável ar

tateando um mundo imaginado
antes que o teatro se diga

do lado de lá do mar
e em muitos sítios que não sei

pegaram nos farrapos
e estão de novo a cerzir
o pano da bandeira-poesia

pequeno apontamento para o dicionário de O Mal

Poreticismo: uma estética da imperfeição. Termo que Eduardo Pitta atribui a um crítico literário habitualmente colérico (cf. Apeadeiro) utilizado na caracterização da poesia de Silva Carvalho. ex: como o personagem de Moliére eramos poréticos sem o sabermos.

Ri-te, ri-te

"O estádio de Coimbra será inaugurado pela terceira vez às 18:30h com uma forte componente académica, que contará com a presença do Coro dos Antigos Orfeonistas . No momento da execução do Hino Nacional serão solistas os senhores doutores Almeida Santos e Carlos Encarnação. Nas bancadas, com projecção nos ecráns gigantes, o comediante Pedro Tochas fará entrevistas a elementos especiais do público."

Coerência

Nós não prometemos nunca que não falaríamos aqui do processo da Casa Pia. E não falamos mesmo.

Wislawa Szymborska

A Antologia da Szymborska, traduzida por Júlio Sousa Gomes, está na Relógio D'Água (a editora que gosta de blogs)

Lógica da Programação

CASE OF

CASE cenobita

CALL IRS(agravar) // (*)

CASE polígamo

CALL IRS(compensar)

CASE confuso

CALL IRS(assumir)

CASE desorientado

CALL IRS(contrabalançar)

CASE desastrado

CALL IRS(inimputar)

OTHERWISE

CALL IRS(aldrabar)

ENDCASE

# (*) isentar (?), à superior consideração da Zazie

André Bonirre

A poesia vai acabar

A poesia vai acabar
os poetas foram todos laureados
(agora mesmo Vila-Mata em França)

Ana Paula não quer ser encontrada.
Morreu em Banguecoque
-já na fila de embarque
um que talvez nos desse alento
ou um refogado sábio em Vallvidrera

A Zazie afogou-se em magnólias.
Fecharam as tascas todas de Lisboa

A literatura não cura- é a doença
O frio que te percorre é sem consolo

Escapam-me as pepitas ao peneirar Houaiss
corrompem os caixilhos um bruto e uma gaga

Na casa da morte só a Sofia tece
O debrum do quadro que anuncia:

Apaguem todos os links
ou A Natureza do Mal cegar-vos-á

Vê-se nos olhos?

O gene que me vai matar
-APOM, no cromossoma 7,
já foi ligado.

Super hypno Sá na Antena Um, socorro

O psi da voz hypno chegou à rádio. Com uma jornalista muito fresca a fazer o papel do coro omniignorante, o professor Eduardo Sá saltou do xis para a antena um. Tira-me, nesta manhã, todo o prazer de reencontrar o Sena Santos. Ao ouvir a sua toada de revelado sinto-me sempre excomungado da sua religião.

A poesia vai acabar

E ninguém, Zazie, nos convida para o deboche.

A poesia vai acabar

A poesia já quasi acabou.

Wislawa Szymborska

Antologia de O Mal: Wislawa Szymborska

O terrorista... olha

A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.

O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:

Uma mulher de casaco amarelo... entra
Um homem de óculos escuros... sai
Rapazes de jeans... conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.

Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
Isso se saberá pelas noticias.

Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo de sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
Faltam treze segundos para as treze e vinte,
E ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.

São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba... explode

Wislawa Szymborska
Tradução

Antologia de O Mal: Wislawa Szymborska


Possibilidades

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me a gostar das pessoas
em vez de amar a humanidade.
Prefiro para uma emergência ter agulha e linhas.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro falar de outras coisas com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os escrever.
Prefiro no amor os pequenos aniversários
para festejar todos os dias.
Prefiro os moralistas que nada me prometem.
Prefiro uma bondade algo prudente
a outra confiante em demasia.
Prefiro a terra à civil.
Prefiro os países conquistados
aos conquistadores.
Prefiro guardar as minhas reservas.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro as fábulas de Grimm às primeiras páginas dos jornais.
Prefiro folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro gavetas.
Prefiro muitas coisas que não menciono aqui
a outras também aqui não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
aos dispostos em bicha para o número.
Prefiro o tempo de insectos ao de estrelas.
Prefiro fazer figas.
Prefiro não perguntar se ainda demora e quando é.
Prefiro tomar em consideração a própria possibilidade
de ter a existência o seu sentido.

tradução de Ana Cristina César

Wislawa Szymborska

Estes amigos não nos devem nada. Pelo contrário somos nós que todos os dias lhes devemos alguma coisa. Agora ensinam-nos a dizer correctamente o nome de uma poeta fascinante, a polaca Wislawa Szymborska (vissuava ximborsca). Ouvimos um poema dela, Curriculum vitae, numa peça com o mesmo nome que O Camaleão, esse grupo da margem, levantou há dois anos no espaço quase confidencial do inatel de Coimbra. Depois encontrámos a tradução num livro do João Lobo Antunes. Andamos a pedir que nos digam se há alguma tradução portuguesa (Cristina, por favor).
Enquanto a resposta não chega, aqui vai um pouco do que dela se pode respigar por aí.

28 outubro 2003

Trabalho de casa: dicionário de O Mal



bafagem dizem os marinheiros do vento de muito fraca intensidade, menos que aragem; também pode ser inspiração, e quer dizer alento, ou expiração e ganha o seu sentido mais terreno: bafo ex: sempre que a via era um baque. gastava os primeiros segundos a ocultar uma imparável sucessão de profundas bafagens.

basiofobia medo mórbido de cair, ao andar (a este ponto, de fobia, só pode paralisar. todo o medo que está para além deste, entorpece e pode limitar o caminhar, mas alerta e faz olhar melhor o trilho. o segredo está no ponto de equilí­brio. dificil. e muito longe da fobia)

baranga de má qualidade, de pouco ou nenhum valor (ajuda a relativizar)

badorar comer avidamente, devorar (é um termo popular brasileiro e delicioso, sobretudo em ritmo de samba: eu badoro você...)

bacorejar advinhar, prever, pressentir, pressagiar; esperar, aguardar; sugerir, propor, insinuar

autotélico diz-se do que não tem significado ou sentido além ou fora de si; ex. a arte pela arte (Ãé o dicionário que o diz). sinto-me autotélico no blog. Ou fora dele.

e uma expressão: estando mal de vida, vendeu tudo na bacia das almas (demasiado barato).
Vendeu tudo na bacia das almas. É demais.

Soam os gongos

Os Olhos da Àsia" (um filme de João Mário Grilo, 1996)inaugurava o ciclo de conferências Oriente- Ocidente que prossegue amanhã e até sexta feira no Auditório da Universidade de Coimbra.
Os Olhos da Ásia passou no TAGV à  tarde e talvez tenha sido repetido  às 21:30h.
A cópia exibida era de uma qualidade lamentável.
Das seis pessoas que estavam na sala, três abandonaram-na quando se aperceberam que aquela reverberação insuportável iria continuar todo o tempo de exibição (com uma paciência verdadeiramente oriental, três espectadores continuaram nos seus lugares).
Para que saibas porque tocam os gongos. Pediam desculpa aos incautos, ao João Mário Grilo, aos maltratados da capital da cultura.

Efodiofobia

Ups...

devo ter ensinado mal. "Efodiofobia" é que é o horror a preparativos de
viagens! O "i" do meio lembro-me de ter esquecido, o "a" inicial não sei
de onde veio. Tenho os dicionários encaixotados (estou a viajar dentro
da cidade para lugar nenhum), mas, com os que tenho acesso, pareceu-me
que "afod..." tinha essa ligação aos vómitos. É uma piada velha, mas
posso imaginar as potencialidades uma gralha assim para quem se arme em
curioso de medicina ou para os apanhadores de cogumelos... E isso
leva-me ao "Bouvard e Pécuchet" (não sei se está bem escrito) um livro
genial e muito engraçado de Flaubert...

Um abraço

Sérgio

Ce n'est qu'un début...


Uma vi que cortou a asa putrefacta e voou; outro foi salvo das águas. O Outono afixou cartazes que dizem: é só um começo. Eu fiquei a ouvir o lamento que nem sei bem se é o da jovem larva castrada se da cientista em abandono: I'm younger than that now.

Jennifer Berman e a lombriga cada vez mais jovem (Blake)

>Cientista português criou verme que bateu recorde de longevidade, era o título da notícia, com link para a Science. Os vermes dão pelo nome de Caenorabditis elegans ,e, pela foto anexa, parecem lombrigas. O nosso cientista pô-los a viver mais de 500 anos (em vidas humanas). Nunca mais morrem. Passa-se a experiência em San Francisco, Califórnia, USA. Como a bolsa do investigador luso acabou e as lombrigas elegantes continuavam juvenis uma tal Jennifer Berman, que não entrava na história, teve que ficar a tomar conta da experiência, diz a jornalista que relata esta descoberta. Mas como é que o nosso cientista logrou este feito? Removeu o aparelho reprodutor dos vermes enquanto eram larvas, elucida-nos a notícia.
Morrem jovens os que deus mais quer. Mas há quem não acredite. E assim em San Francisco, Jennifer Berman continua a olhar as lombrigas gerontes, sem perceber porque é que o cientista português não dá notícias.

27 outubro 2003

Amanhã no Livro Aberto

Terça feira às 22 horas, na NTV, como habitualmente, o Livro Aberto por Francisco José Viegas. Oportunidade para conhecer algumas prodigiosas leitoras. A não perder.

Teste os seus conhecimentos

Leia os seguintes títulos e distinga quais os que pertencem ao Inimigo Público:

Ferro Rodrigues entrega liderança nas mãos do PS.
Madeira lança concorrente da Coca-Cola.
Apoio às artes vai ser feita com dinheiro do PIDDAC.
Moita Flores processa Ferro Rodrigues.

O Professor Mário Pinto linkou-nos!

O prof. Mário Pinto é um opinion-maker da folha do sôr zé manel furnandes . Nós não o lemos, habitualmente- preferimos ir directos às fontes. Ele também não nos lê, o que é inteiramente compreensível. Sucede que hoje pergunta a toda a largura do seu espaço: Onde está o Mal? Quem o conhecer diga-lhe, por favor.

Agradecimentos

Ao Sérgio (aba de heisenberg) e ao Filipe (mar salgado) pela atenção com que lêm e corrigem o dicionário de O Mal. Obrigado pela efodiofobia e pela sega. O dicionário já tem a sua corrigenda.

Ciclo eterno

REPETE

SE

vivo

ENTÃO

sobrevive()

SENÃO

ressurge()

FIM_SE

ATÉ extinto

André Bonirre
A vida
- estar vivo
é uma grande contrariedade
para a matéria

( tu explicaste
em versos já perdidos
a paciência da mitocôndria
a usura dos lisosomas
o segredo que os genes
sussurram
aos aminoàcidos
na linha de montagem)

um esforço sem sentido

regressaremos todos
ao nosso estado
natural

mineral

Sena e Quintela (polémica já antiga)

Paulo Quintela foi um germanista, professor de Letras em Coimbra, fundador e director artístico do TEUC, tradutor de Rilke, Hölderlin, Brecht, entre outros.
Jorge de Sena não necessita de apresentações.
Em 1955, Quintela traduziu Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, que o Instituto Alemão da Universidade de Coimbra editou. Não há em português prosa desta- escreveu então, como antes dele não a havia em alemão.
No prefácio do livro dedicou a Jorge de Sena as seguintes frases: Mas eis que um tabelião das nossas letras- ou seu caixeiro, conforme se encare como inventário ou balanço aquilo a que chama Tentativa de um Panorama Coordenado da Literatura Portuguesa de 1900 a 1950- me quer distinguir, mimoseando-me com a duvidosa honra da inclusão do meu nome no seu catálogo de arrumação literária. Trata-se (...) do senhor Jorge de Sena que em Tetracórnio, organizado por J. Augusto França, a pág 22, na esfalfada e retorcida sequência- ou inconseqência- de uma prosa que vai bem ao título da publicação, abusou do seu múnus de crítico (?), porque nem o mandei lavrar aquelas linhas, nem eu era merecedor da sua charrua que, assim como assim, não tem relha para a minha leiva. etc, etc.

Em 1999, numa daquelas edições de Natal, Mécia de Sena tornou públicos alguns inéditos de Jorge de Sena (este inconveniente que atinge alguns criadores de deixar espólio e viúvas...). Entre eles, datado de 30 de Setembro de 1970, o seguinte: Quintelas há que Paulos se desunham/ de fúrias teatrais e tradutórias/e que em décadas de teses sepultadas/se fazem tão ilustres, tão minervas,/ que treme aquele que se não desfaça/ ante os humores do génio eczemático./Da Lusa Atenas macha cariátide/desde Heines sem nome em tempo de Hitler/ às devoções das Vértices marmotas/ passando o pêlo aos jovens cudibundos/
se rilkizando em Goethes da Couraça.


Não o mandei lavrar aquelas linhas nem era merecedor daquela charrua. Não tem relha para a minha leiva; cudibundo; macha cariátide; rilkizar-se! Directos para o Dicionário de O Mal.

26 outubro 2003

Para maiores de dezasseis anos

Na Bertrand, O meu Pipi, envergonhado, na estante da transcendência. Era dia de festa, com os meninos a comprar o Harry Potter- vi o cuidado com que o folheavam, lhe tomavam o peso- a maioria vai ler. Também se empilhavam Damásios, com o autocolante irritante a anunciar 10ª edição. E ainda o terceiro livro do tradutor da Odisseia. E Du coté de Guermantes- meu deus,os proustianos tÊm que ler mais depressa do que o pessoal da Leitura Partilhada.
O Meu pipi, cinzento, ao lado do Paulo Coelho e dos Templários. Com aquele aviso terrível: Para maiores de 16 anos. Aos 16 anos já tinha lido A Tortura da Carne, A Madame Bovary, o Foucault, o Hemingway, o Arthur Penn, o Rilke, o Stendhal, o Heidegger. Pensando bem, acho mesmo que não li nada de importante depois disso. Nunca compraria um livro desaconselhado para os menores de 16 anos.

Também lá vi um livro sobre os blogs. Li-o à-marcelo. Mas, diferentemente do primo, não o posso recomendar. Pareceu-me muito...incompleto.

Bookcrossing- Portugal

Acho que a serendipidade pode ser um programa de vida. Mas ainda vou esperar algum tempo antes de começar a semear os meus livros ao acaso das ruas. Por enquanto mando-os aos que amo. Comecei na semana passada.
Entretanto, alguém- tens que ser tu, não é Cristina, pode resumir o que se passa em Portugal com o bookcrossing? Agora que em Espanha se criou um mirror de WWW.bookcrossing.com

Razões da desigualdade

Nós aqui laboriosamente a peneirar o Houaiss (meu querido Aurélio nunca te abandonarei) para encontrar meia dúzia de pepitas pordia e ele, de uma assentada, o lascivo, manda logo cinquenta.

Trabalho de casa: dicionário de O Mal


bibliomancia: pretensa adivinhação por meio de um livro aberto ao acaso . Pretensa?

beluíno: selvagem (mas também relativo a feras, bestial, brutal, feroz). tem qualquer coisa de belo esta palavra

bandurrear: tanger bandurra (espécie de alaúde com braço curto e muitas cordas); em sentido figurado, quer dizer viver ociosamente (ao que o dicionário, implacável, acrescenta: vadiar)

bangalé: festival rústico; comezaina em baiúcas campestres (baiúca é o mesmo que betesga, mais conhecida por tasca ou taberna)

cegar: para o comum dos mortais privar da vista (mas cego também pode significar deslumbrado, alucinado, ignorante___ todos o sabemos). não confundir com o homónimo segar(como nós já o fizémos). a morte com a sua foice sega as vidas dos mortais, e às vezes, sem darmos conta, segamos o que podia ser uma boa amizade.

Contorcionista

Madalena envia-me fotos do nosso encontro de há meses, olheiras de uma longa noite, aqui eu, ali ela equilibrada no salto alto, tão nova, será que vai dar o salto, ousará trocar de número, lançar-se num novo voo? acalma-te, querida missionária vigilante, é só exibição acrobática, o bolo ro/cocó é incomestível.

André Bonirre


Trabalho de casa: dicionário de O Mal


As 14 mil palavras do Houaiss não são todas as palavras da língua portuguesa. Pedreiros da blogosfera, empunhando orgulhosamente o escopro, todos os dias criam algumas. Sem medo desse ofí­cio, aqui.
Conheci, de raspão, três bloggers: o Nuno dos aba, o Nuno da klépsydra: escrevem textos (literários) muito interessantes. São engenheiros fí­sicos. O Nuno da klepsydra disse-me que o titular desse espanto que é umblogsobrekleist, o alexandre, é...engenheiro físico. Mas o que andam a escrever os gajos das letras? Sobre biologia, suponho.
O Sérgio aba, ensinou-me que o medo dos preparativos da viagem se chama efodiofobia. (Pessoa seria assim um efodiófilo que não chega a viajar).
Ouvi a L. a palavra músula, referida a músculo da coxa (de musle?). Ausente do Houaiss.
Gosto da palavra musse. Agora que se calou a musse dos dias sinto a falta da s.a. Gosto da musse da cidra, e da musse da cerveja- bem mais do que da cidra e da cerveja. Gosto da musse com que desenhas umas madeixas no cabelo. E da musse de algumas aves sacrificadas. E da musse de café, enfim.
Adoro a palavra musseline. E o tecido leve e diáfano. Hei-de visitar Moussoul, liberta da ditadura religiosa, para ver as mulheres passar, sorrindo, com túnicas de seda transparente e de algodão muito leve.
O áfodo é um tubo secreto que liga, nas esponjas , a câmara flagelada ao canal excorrente. E a afodosia é a acção de se distanciar (provavelmente com alguma repugnância, porque esta palavra designava, também, o vómito).
Uma palavra de que não nos podemos afastar muito é a palavra musgo. As briófitas estão agora em toda a parte (excepto nas nossas ruas de asfalto e nos nossos shoppings de plástico, infelizes). Fofo é o musgo no brejo.

Musicaria é a loja onde vou agora procurar a banda sonora de Kill Bill, o Quarto Filme de Tarantino com a Daryl Hannah e a Lucy Liu tão lindas que quase comovem e a tua face, Uma, retalhada pela crueldade sem nome de um homem!
Está um dia lindo de outono, dizem os que acordaram cedo. Talvez encontre no caminho um musiquim.

Dificuldades na leitura

Desde que o público edita o inimigo público que me é muito difícil ler o jornal. Será que hoje é sexta-feira- descubro-me a perguntar? Mas esta é a página internacional, de desporto, da ciência? Ou serão transcrições do inimigo público, uma antologia dos marretas, bloguices, em suma.
Todos os dias coleccionava glórias sobre os homens de palha derrotados. Construía inimigos horrendos, sempre os mesmos. Pequenos bonecos de cartão que alinhava como um formidável exército. Não tinha paciência para pormenores. Eram todos réplicas de um maior inimigo que nunca nomearia. Toscos, inacabados. Criaturas feitas para serem vencidas. Envenena-se o demiurgo no seu emunctório.

25 outubro 2003

Sexualidade

Não quero deixar encerrar o tema no Mal.
Não é preciso exemplificar.
Sim, o blog do miguel vale de almeida foi um dos nossos links iniciais. Mas eu discordo dele: primeiro a Mulher, depois o blog e enfim a humanidade.

Trabalho de Casa: Dicionario de O Mal



arse: elevação da voz ou do tom; (mús.) o levantar da mão ou da batuta para marcar o primeiro tempo de um compasso
ex. a sala enchia-se, mudava o mundo à arse do maestro.

arregoar: abrir regos em; fender-se, partir-se, abrir-se.
ex. volta a ser una minh'alma arregoada!

marulhar (muito mais bonito que arregoar): agitar-se formando ondas; imitar o barulho das ondas (barulho é o que vem no dicionário, mas barulho não serve para ondas. marulho? diz o dicionário que significa marulhada e esta esconde como significado a agitação das ondas. mas como sentido figurado atribuíram-lhe barulho, balbúrdia...)
ex. ela encostava o búzio ao ouvido e entretinha-se a ouvir o marulhar que lhe vinha de dentro. tinham-na enganado dizendo que registara o som (ou seria o dom?) dos sí­tios por onde tinha passado

ardí­fero: que produz ardor (palavra que em sentido figurado significa veemência, paixão, intrepidez. está demasiado perto da dor, como era de prever...)

Sodoma e Gomorra

Os hugos escreviam calmamente um blog quase anónimo. Um dia descobriram a Assumida e a Mente e um beijo apaixonado (claro que não eram elas, podia ser do Van Gogh- mas pela Mente perturbada do Vincent nunca perpassou aquela cena, ou do Julião Sarmento- esse já não digo nada). Claro que não eram elas. Escolheram aquele ícone para o seu blog como nós o Sagrado Coração, ou o umblogsobrekleist a cara da Rita Ferro. Não são elas- fossem-no e seria outra a bomba inteligente. Mas os hugos escreveram sobre a sexualidade, e saltaram para o top das visitas e para o ranking dos mais incompreendidos. Nós estamos a festejar (?) o quarto mês de escrita e, a pedido do hugo, postámos duas coisas inocentes sobre a homosexualidade. Zás: record de comments, mesmo tendo em conta a gaguez (não cliquem mais do que uma vez em comments, por favor. Aguardem pacientemente, que o ennetation é lento), e o fenómeno querida-Zazie. Como diz a São e escreveu muito bem o Jules Romains, é o sexo que divide.
Mas aconteceram coisas interessantes no que à primeira (e segunda vez) me pareceu vulgaridade.
O primeiro comentário foi da Isabel dos Aba, que foi minha psicóloga na Penitenciária (e achava que eu merecia aquela prisão). A Isabel estranhou eu poder conhecer a emoção homoerótica. O que eu quis dizer com o meu post é que reduzir a condição homosexual a uma orientação- que se escolhe no cardápio das orientações, é redutor. Que me parece ser a homosexualidade uma condição, uma forma de existência, que, entre outras coisas por ser minoritária, tende a ser vivida nos elevados níveis energéticos da paixão. A Isabel, com o seu HHHuuumm??! queria dizer também que felizmente era hetero, e eu só posso congratular-me com a sua felicidade e pensar, com um pouco de angústia, nos que, pelos vistos infelizmente, o não são.
Depois a Zazie levantou questões importantes: sobre os bígamos, os poligí­nicos, as poliândricas, os desorientados sexuais, os desinteressados sexuais, os separados sexuais e o IRS. Por terem sido levantados no espaço menor dos comentários, pelo estilo esvoaçante da Zazie, não foram aprofundados. Mas não são questões menores. Tenho muita pena de não ter ainda descoberto aqui evolucionistas modernos, antropologistas, primatologistas a escrever sobre a sexualidade e aproveito para fazer publicidade de livros tão fundamentais como The Anatomy of Desire ou, de Geoffrey Miller,The Mating Mind, a tua mente, lecteur hypocrite.
Finalmente, o hugo, que é claramente uma pessoa bem educada, espantou-se de um casal gay lhe chamar grosseirão e, logo a seguir, citar entusiasmado o meu pipi. Também aqui, nO Mal, foi uma aparente alarvidade do Zé Nabo quem animou o casal gay (admito que o Zé Nabo não seja alarve e eu não tenha percebido a subtileza). É um pouco triste mas isso nada muda. Haverá sempre homosexuais delicados e trogloditas, inteligentes e menos inteligentes, cultos e barroseiros. Era mais ou menos assim que começava o Discurso do Método.

24 outubro 2003

Comemorar nas ruas

Se nevar, venham com as crianças. Se não nevar, também.

Um viário a haver

No pavilhão (o de Hannover- que não foi feito para o nosso outono tão severo) o Arquitecto apresenta uma visão do atravessamento da Cidade Futura por um viário a haver. O arco teleférico sobre o Botânico, a estação suspensa sobre o rio, a Frente Ribeirinha. Os visionários, os profetas, os neo-crédulos____ todos querem fazer perguntas ao Munícipe. Fazia-se uma boa fogueira, ali na vargem. Mas o acentuado arrefecimento nocturno tinha gelado qualquer coisa____ e não eram só as mãos que lhe tremiam.

Trabalho de casa: dicionário de O Mal


atlante: gigante fabuloso (nesta acepção grafa-se com maiúscula inicial); figura de homem que suporta o peso das ordens arquitectónicas; (fig.) homem muito forte
ex. "creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes “(Natália Correia)

atalanta: borboleta diurna, da família dos Ninfalídios (não conheço a família, mas, ficando-me pelas palavras, deixei de cobiçar a farfalla dos italianos)

ataranta: que causa atarantação; atrapalha; estonteia; desnorteia; (ataranta-se: perde a presença de espírito). Sempre que perco o Norte me ataranto.

atardar: atrasar; demorar (bem mais bonito do que o costumeiro atrasar, mas bonito mesmo era pontuar)

atafona: moinho movido à mão ou por força animal; azenha; andar numa atafona significa andar numa roda viva. E de atafona se chega a atafego: acto ou efeito de atafegar; asfixia; sufocação.
Não peçam para contar. É uma história de amor e não sei como acabou. Ele queixava-se: “Já não me pede para a atafegar”.

Decimonónica- relativo ao séc XX- ouvido num colóquio de arquitectos (não referido no Houaiss, nem no Aurélio, mais novecentistas, ou nongentistas). Talvez seja adaptado do italiano- vindo de onde vem. Soa a canónica. Assim, uma poesia decimonónica, uma arte decimonónica, uma ciência decimonónica designarão o cânone do século XX nestas áreas...

Decesso: acto ou efeito de deceder; morte; passamento- o que é muito radical, convenhamos. Prefiro abatimento, diminuição; também usado como rebaixamento de função, de classe. ex: Compreendi, os tempos eram outros, e eu comprometera-me excessivamente com o anterior governo. Apesar de tudo eles asseguraram-me um decesso decente na empresa.

Novel: fresco, acabadinho de chegar. O pl. , novéis, é de fugir.

Decídua- que cai. Melhor que caduca, parece-me. Também quer dizer qualquer coisa das miudezas, mas, francamente, não estou para aí virado.

Debangar- falar prolixa e longamente. Um post não se quer debangado.

Decessor- antecessor. É sempre melhor que o actual titular, mas infelizmente só tarde demais é que damos por isso.

Deblateração- expressar-se calorosa e críticamente (contra qualquer coisa). O mesmo que imprecação, esta sim, uma bela palavra (“A grande imprecação contra as muralhas da cidade”, soltada por uma mulher chamada Fernanda- assim lhe chamava o seu homem, Ernesto, que morreu de amor quando ela lhe faltou.)

Embalde: o mesmo que debalde, mas com mais balanço.

23 outubro 2003

Água é preciso



Sete biliões de pessoas sem água em 2050.
A menos que os governos tomem decisões ,, sobre o armazenamento, a distribuição e a partilha .
(do Relatório sobre a água . Nações Unidas)

Trabalho de casa: dicionário de O Mal


aluarado: iluminado pelo luar; da cor do luar ex: quando me abriu a porta, a sua face aluarada reconciliou-me com a noite.

amantar: cobrir ou embrulhar com manta; proteger; encobrir; (prov. estremenho), amancebar-se ex: na carruagem, encolhida como um feto, beliscando-se para não adormecer, com medo de ser amantada.

amontanhar-se: elevar-se como uma montanha ( menos interessante são os significados de amontanhar: acumular; avolumar-se).

uma sugestão para as mais feias (não que queira fazer um dicionário delas...):
amorudo: inclinado ao amor; apaixonado (definitivamente a evitar se for mesmo amor)

e ainda uma curiosa - amorroar: arder (o lume), com dificuldade, por má disposição da lenha (não sei se má disposição significa má colocação ou mau
humor... gostava que tivesse este sentido) ex: amorroado é como te quero. Se te animas, o que farei com as tuas cinzas.


Ao Hugo sobre a homosexualidade

A opinião sobre a homosexualidade é conformista. A homosexualidade não é a sexualidade dos que não são heterosexuais. A homosexualidade é, no dia a dia, a grande emoção transgressora, a fona da cabeça e do peito, que os heterosexuais só sentem no alto início da paixão (e é preciso que seja a proibida).

Relações naturais de parentesco

É uma família vulgar, o avô e a avó, a mãe, o filho e a filha, irmãos. Depois entrou a Lisa, encontrada pela filha, ficou da mãe. O Tico, pela filha recolhido, é do avô. O Calki, atropelado e depois perfilhado pelo filho. O Fred, socorrido pela filha, ainda em tratamento. São todos uma família, o Tico avô, a Lisa mãe, o Calki e o Fred filhos, adoptados, primos entre si, portanto, se não me enganei. Todos da família, logicamente, como eu...

André Bonirre

Trabalho de casa: o dicionário de O Mal



abarcia: apetite insaciável, bulimia, voracidade.

abarga: várzea, varga, vargem, varja, planície.
ex:Numa alvarelha apressaram o passo e avistaram a abarga onde os mais velozes davam já mostras de uma extraordinária abarcia.

açafata: fidalga ao serviço de damas da família rel. ex: no poema de M.V.Montalbán Chineses da China/ na Panama Air/ as açafatas/são bonecas mestiças/de orquídea negra e mulher ...

foliar: participar em folias; folhear; numerar as folhas de um livro; paginar em livro aberto ex: Folia mesmo era roubar o livro foliado a meias.

22 outubro 2003


M. de azulcobalto lê Cavafis (Kavafys) em francês (há pelo menos a tradução do Sena e uma em que participou o J.M.Magalhães). Temos que ler o Robert Walser em português do Brasil (O Ajudante, editora ARX). O Salteador está publicado na Relógio D'Água; Ficções de comer editou o conto O Jantar; Ficções, coordenada pelo Paulo Filipe Monteiro, publicou um texto, da autoria de Pedro Sobreiro, intitulado No Covil de Walser. Jorge Silva Melo diz que há pelo menos três livros traduzidos.Aqui no não se nascefica-se, o anjoélico traduziu livremente Basta; o luís de A Montanha Mágica ; o país relativo; esse espantoso silêncio, pelo que pude ver, são admiradores do suíço que passou os últimos 25 anos num hospício, sem escrever-dizem, e morreu, num dos seus passeios, no dia de natal. O Passeio está traduzido em português por uma editora de nome Granito. Alguém tem? Ia jurar que vocês tinham uma palavra a dizer. Enquanto esperamos vamos lendo Selected Stories
By Robert Walser
New York Review Books
; $12.95; 196 pp.

Caligrafia em Pedra

cALIGRAFIA EM PEDRA (I)
...
ilhas caligráficas
cercadas
por um mar
sem marés,

...
Mapa, Carlos de Oliveira

Um céu cobalto opalescente de água sobrevoa um mar convexo e, depois, durante o looping, o contrário e o contrário do contrário, ao ritmo do voltear planado de uma espiral acrobática que se contorce e lenta se espraia.
Suspenso deste mar de céu, uma colina invertida, um cone pendurado pela base, líquenes que escorrem atados a um vértice pardo.
Uma linha pontilhada a branco espuma, recorte finíssimo, faz a fronteira entre as mil gradações do verde cónico e os infinitos azuis planos.
Mais uma cor ainda, uma gota púrpura, do lado de dentro do musgo. Uma última cor, um ponto a negro, por enquanto imóvel, ‘sobre o lado esquerdo, a metade mais gasta’ dessa mancha de sangue que o vento esmaga.

---------------------

cALIGRAFIA EM PEDRA (II)
...
e segues
nesse passo
que mal pisa
o silêncio,
...
Rasto, Carlos de Oliveira

Este ponto a negro, fixo, é o risco de um homem, que se põe em marcha, desenha um salto e some-se por uma fresta onde o musgo é mais sombrio. Desaparece ou guarda-se invisível até reaparecer mais tarde, mais acima e mais perto. É André Bonirre, cego de luz ao romper do fundo. Recomeça a escalada em esforço, rumo ao vértice, o cume. Aí chegado, recolhe-se em êxtase, os olhos marejados, se os víssemos, repousam contemplativos perdendo-se nos céus marinhos. Num sobressalto, fixa o céu, leva as mãos abertas à boca que se abre e eu ouço um grito, uma palavra trovejada, e lanço também o meu grito de caçador e os dois ecos propagam-se entrelaçados e distantes desfazem-se já um som único.

--------------------------------

cALIGRAFIA EM PEDRA (III)
...
numa caligrafia
de letras
vagueando,

...
Estalactite, Carlos de Oliveira

... os factos narrados são verdadeiros, talvez com imprecisões menores. A mancha rubra será em rigor um rectângulo e talvez seja ocre se essa for a cor do telhado da casa do Museu do Vulcão dos Capelinhos. A entrada do poço existe, colada às paredes em pedra nua. O poço é de facto um túnel, arbóreo, opaco, muito íngreme. Manteve-se invisível, porque indescritível, esta parte do trajecto em pura espeleologia vegetal. Autêntico foi o êxtase contemplativo de André, mas não se disse do espanto da descoberta – o cume é um ninho gigante, uma minúscula cratera ladrilhada. O primeiro grito é real e é expelido quando ele avista, sobre a lama gretada, numa caligrafia de letras vagueando, um poema universal, escrito pedra a pedra - L I B E R D A D E.. depois, o açor elevou-se mais alto até ser um ponto indistinguível.

Estes os factos vividos por André Bonirre nesta micropaisagem entre duas memórias naquela busca ao meio dos oceanos gorada não inteiramente – aí estão vestígios, versos soltos de Ana Paula Inácio – pedras, margas, basalto, xisto.. no lado incerto onde bate o vento.. à espera que o tempo faça o resto.. fechada em código toda a escrita.. até se dissolver em pó.

André Bonirre

Ilustração científica by mail

Saiu mais um número da revista CAIS, editada pelo Círculo de Apoio à Integração dos Sem-abrigo http://www.cais.pt, o nª79 de Setembro 2003, dedicado ao Museu da Lourinhã, com variadas imagens e ilustrações paleontológicas e um um apontamento sobre Ilustração Paleontológica da autoria do Eng.Simão Mateus, ilustrador do Museu.

André Bonirre

Agradecimentos

Ao Pedro Caeiro pela referência ao Dicionário (mandem palavras e os seus usos, de preferência palavras raras e delicadas). Ao Zé Mário pela atenção. Ao azul cobalto pelas cores que usa. Ao 100nada pela generosidade. Ao Aviz porque sim.

Acoimado e feliz

Uma vez por mês sou acoimado (o carro não fez a vistoria, falta-me sempre um documento, atendo o TM em andamento, estaciono onde não devia, tenho amolgadelas a mais, ando depressa nos locais errados). Telefono primeiro a um polícia amigo, depois ao comandante, a seguir ao coronel que está agora à frente da gnr. A seguir vou pagar, contente por viver num estado de direito.

Trabalho de Casa: o dicionário de O Mal


alcachinar - curvar; alquebrar; curvar-se; encolher-se; amarrecar-se; acabrunhar-se.ex. a sua silhueta alcachinada, sinal do percurso que fizera para conseguir ocupar o cargo que agora detém, acentuava-se ao lado do sorriso bonacheirão do senhor da bengala.

alquilar - alugar ou tomar de aluguer ex. tinha estranhado a palavra quando a vira pela primeira vez e afinal também em português se pode alquilar um espaço que se quer ocupar sem ter (pela língua nos aproximamos dos castelhanos).

amaxofobia - medo mórbido aos veículos em marcha ex. não fossemos dependentes deles, em breve todos sofreríamos de amaxofobia.

amocambar - juntar em mocambos (mocambo - bras.: grande moita onde se abriga o gado nos sertões; abrigo de quem vigia a lavoura ou as plantações); esconder ex. amocamba-se, como quem se resguarda da vida


já agora, sabiam que alvalade quer dizer "espécie de estrado destinado a permitir que dele se vejam procissões e outras solenidades" e que tanto pode significar cadafalso como palanque? é só uma curiosidade, que eu no futebol não me meto...

O post da manhã

Há dias que sentia uma inefável leveza ao ler a folha do sôr zé manel furnandes, que é, como se percebe, o jornal onde escrevem alguns dos meus jornalistas favoritas (não, não foi um lapso freudiano). Só agora percebi o mistério: ele tem estado ausente.

Os meus livros, na última edição, tem um editorial da Tereza Coelho com uma pequena e vigorosa homenagem a Edward Said. Ora eu li na blogosfera, no dia em que se soube da morte de Said - e uma incrível tendência para esquecer a iniquidade fez-me esquecer a autoria, qualquer coisa como isto, :"RIP. Infelizmente as suas idéias não morreram." Quando finalmente a Cotovia editar Orientalismo (oh Cotovia, é preciso uma ajudinha de trabalho voluntário?) talvez o autor dessas linhas leia finalmente (felizmente) Said.

É tambem anunciada a fixação ne varietur de António Lobo Antunes, vítima de incorrecções e hipercorrecções por copistas e revisores. Quem o vai fixar é M. Alzira Seixo. Com todo o respeito: António, entregares-te assim a uma mulher, parece-me excessivo.

A direita xenófoba tem mais de 20% nos cantões de Vaud e de Généve. A foto que acompanha esta notícia é esclarecedora da boa alma do dirigente da formação que conquistou o voto destes cidadãos. Adieu Suisse romande, terra secular de exílio. E talvez, adeus Suíça: dizem que aos sete cinzentos se juntará agora um castanho.

21 outubro 2003

Eras sempre tu

Ao meu pai

Da batina dos padres dos castigos na escola
Do redil dos polícias da comunhão solene
Da matinée dançante
Da tia vigilante
Da gentinha que havia
Do medo de ser pobre
Eras sempre tu quem me salvava

Trabalho de casa: o dicionário de O Mal


gnose: conhecimento superior do espírito

homem de palha: argumento contra um homem palha. Diz-se do que deturpa os argumentos de outro, por exemplo com falsas citações, para assim mais fácilmente as destruir. Ex: Valoroso, ganhou todas as polémicas contra homens de palha. Deve sentir-se muito sózinho.

epochê: a suspensão do juízo preconizada pelos cépticos (ex: em breve)

ataraxia: a tranquilidade depois da suspensão dos juízos (ex: em breve)

rogar o almocreve: chamar a telepizza, comprar a mercearia pela net.

Tua é a glória

Pai nosso que estás nos céus
Santificado seja o teu nome
Venha o teu reino
Faça-se a tua vontade assim no céu como na terra
O pão nosso sobresubstancial nos dai hoje
E perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós
perdoamos aos nossos devedores
E não nos deixes cair em tentação
Mas livra-nos do mal
Porque teu é o reino
o poder
e a glória

Pai nosso dos cátaros ( em El hombre de mi vida, Manuel Vasquez Montalbán, Planeta, 2000)

Festa do Cinama Francês

Festa do Cinema Francês
Coimbra, cinema Avenida www.coimbra2003.pt

Hoje: Petites Coupures de Pascal Bonitzer com Kristin Scott Thomas, às 14:00h (faltem às aulas e ao emprego)
Tiresia de Bertrand Bonello, às 19:00h (“Tiresias tudo fez para ser de novo transformado em mulher”. Deixem os filhos nos infantários, não façam o jantar.)
Swimming Pool de François Ozon , às 21 :30h (Ponham o Francisco José Viegas a gravar. É às 22h na NTV).
Contra Franco vivíamos melhor!

Dos jornais(El Pais; Vanguardia)


Era un escritor incansable, abundantíssimo, y el unico problema fue limitar sus ansias de publicar todos los dias, en todas las paginas, sobre todas las questiones. (Juan Luis Cebrián, ex director de El Pais, a quem Mnuel V Montalbán chamou o sexto poder).

Pero Manolo no puedo haber muerto precisamente un dia en que no tengo bacalao en mi despensa (Maruja Torres)

Mientras escribía, en su casa, cocinaba: se levantaba del ordenador para ir a revolver un poco su guiso del dia. (Eduardo Haro Tegglen)

...durante un seminario en Sitges cuando, ante la alocución interminable y metafísica de un filósofo italiano sobre la postmodernidade, Manolo dijo en voz baja, casi inaudible: "Mire usted, yo soy un poeta..."

Estaba lleno de talento. Tal vez su problema era que le sobraba ese talento. (Manuel Vicent)

Hoy yo sé que perder a un antagonista entristece tanto como perder a un aliado. Quiizá más. Me alegro que Manuel Vasquéz Montalbán viera al menos una vez a su equipo campeón de Europa. Y la próxima vez que eso suceda, estoy seguro de que me acordaré de el y pensaré lo que también pienso y dijo ahora en su honor: Visca el Barça ( Javier Marias)

Era mucho más que un redactor era una redacción. (Carmen Balcells)

Manuel Vasquéz Montalbán (bibliografia sumária)

1963: Informe sobre información
1967: Una educación sentimental (poesia)
1971: Crónica sentimiental de España
1972: Yo maté a Kennedy (aparecimento de Pepe Carvalho)
1972:Cancionero general
1974: Tatuaje
1977: La soledad del Manager
1977: Diccionario del franquismo
1978: Los demonios familiares de Franco
1979: Os mares do Sul
1980: Las cocinas de España
1981: Assassinato no Comité Central (provavelmente o primeiro título a ser traduzido entre nós)
1981: Recetas imorales
1981: Os pássaros de Bangkok
1984: La rosa de Alexandria
1984: Mis almuerzos con gente inquietante
1985: O pianista
1985: Contre les gourmets
1986: Tempo para la mesa
1986: El Balneario
1987: Os alegres rapazes de Atzavara
1987: Pigmalión y otros relatos
1987: Las recetas de Carvalho
1987: Barcelona
1988: Quarteto
1988: El delantero centro fue asesinado al atardecer
1989: Escritos subnormales
1990: Galindez
1991: O labirinto grego
1991: Memoria y deseo ( recolha da poesia desde 1963 a 1990, incluindo Praga)
1992: Autobiografia do general Franco
1993: Sabotaje olimpico
1993: Ciudad (poesia)
1994: O Estrangulador
1995: Reflexiones de Robinsòn ante un bacalao
1996: O prémio
1997: Quinteto de Buenos Aires
1997: El escriba sentado
1998: César ou nada
1998: Deus entrou em Havana
1999: El señor de los bónsais
2000: El hombre de mi vida
2000: Marcos:el señor de los espejos
2002: Erec y Enide
2003: Geometrias de la memoria. Conversaciones. (no prelo)
2003 La aznaridade (no prelo)
2003: Milenio (no prelo)

Trabalho de Casa. Dicionário do Mal (2)


alfar-se: secar e engelhar-se (os frutos), apresentando alfas (manchas)
ex. todos os anos colhia delicadamente os frutos da sua terra antes que se alfassem

alfeire: terreno cercado onde se recolhem os porcos; chiqueiro; gado que não cria
ex. cuidava dos porcos no alfeire (aceitam-se sugestões para sentidos figurados...)

almádena: torre da mesquita donde se chamavam os crentes para a oração; minarete
ex. hoje a chamada vem da almádena, mas sai de um altifalante

almarge: terra de pasto, pastagem, prado
ex. depois da caminhada, descansaram no almarge

aplastar: desfraldar (as velas do navio); (bras.) fazer calar, extenuar
ex. aplastou os companheiros para conseguir sentir o silêncio

áptero: que é desprovido de asas
ex. o sonho dava-lhe asas. sabia que os ápteros não vão longe

apurpurado: coberto de púrpura, tirante a cor de púrpura, avermelhado
ex. falou da cor do céu em África ao pôr do sol. apurpurado não chega.
magnífico, dizia, sem o conseguir reduzir às cores.

aquiria: falta de mãos ou de uma delas
ex. a falta de largura de mãos não lhe deixava tocar aquele trecho. sentia-se
como se sofresse de aquiria

aravia: linguagem confusa; algaravia, linguagem arábica
ex. para quem o ouvia, era apenas uma aravia, mas falava na linguagem dos que
vivem isolados no meio do monte

arensar: soltar a voz (o cisne); a voz do cisne
ex. tremia todas as vezes que tinha de subir ao palco. lá esquecia-se de tudo.
arensava maravilhosamente (como sinónimo de cantar; esta vai definitivamente
para o dicionário das mais feias!)

arroio: pequena corrente de água não permanente; regato
ex. secara como um arroio no verão

atricado: diz-se do indivíduo que executa alegremente e com diligência um
trabalho manual
ex. empenhava-se. era atricado

20 outubro 2003

O novelista gordo e o poeta magro

A minha idéia era ser artista. E acreditava que para ser um artista como deus manda tinha que vestir de negro, estar sempre desesperado, ser magro e ler Lautréamont nas esplanadas. Alimentei este equívoco durante anos até que me dei conta de que a alegria também existe. É uma ironia sobre tantos jovens malditos, embora não contra eles, porque os admiro. Mas eu perdi bastante contacto com a magreza e aproximo-me mais da figura do novelista gordo. O que também não está mal de todo, porque eu diria que os novelistas têm que ser gordos e os poetas magros.

(Enrique Vila-Mata ,entrevista a Serge Pamiès, El Pais, sábado, 18 de Outubro)

Paris no se acaba nunca

Enrique Vila-Matas
Anagrama. Barcelona, 2003
240 pp 13 E

Uuuuffff! Acabamos de convalescer do Montano, ainda não tivémos tempo de respirar depois daquela conferência de Bordeaux e o nosso Enrique já está a lançar o seu novo livro. Um regresso à juventude e aos tempos que rodearam a sua estreia, auto-exilado na Paris dos anos 70. Promete!

Problemas de fígado

Primeiro fígado, um fígado mau – matou-se a trabalhar para proteger o fígado, só bebia bebidas caras. Segundo fígado, um fígado fraco – para defender o fígado desguarneceu o queixo, caiu knockout. Terceiro fígado, um fígado/baço- respectivamente, do lado direito e do lado esquerdo.

André Bonirre

Prendas



Para claire lunar o último disco de Robert Wyatt, Cuckooland, uma preciosidade com outra dentro: uma versão de Insensatez de Jobim, que dá vontade de ir ao original, regressar e no fim agradecer a todos e a ela sobretudo que traz na lapela este nome corajoso.

Para a Alexandra, by mail, o livro de Vila-Matas, El mal de Montano. Uma prenda perigosa porque ela vai adoecer. Mas conheço a história natural desta doença e posso assegurar um desfecho feliz.

Para o CAM o livrinho cor de Marfim de Derrida .

Para o André Bonirre uma faca de cozinha e uma almotolia em materiais não cortantes.

Para o António e o Daniel Tecelão, uma direcção e votos de bons passeios: www.bestanca.com . Quantos mais o conhecerem como ele é, o vale do Bestança, mais o defenderão.

Para o Paulo, Spoon River, Uma Antologia de Edgar Lee Masters, tradução e prefácio de José Miguel Silva, ed Relógio D'Água, setembro de 2003173 pp, 14 E, Edição bilingue.

Para a Joana : Le Dictionnaire des mots délicats.

Para o Quartzo et al.: o poema da Antologia de O Mal que hoje ainda editaremos e os agradecimentos pela boa poesia que têm trazido e pelo resto. Vocês são mesmo maus, caramba!

Para a malta da leiturapartilhada o ensaio de Malcolm Bradbury sobre Virginia Woolf publicado em The modern world Ten great writers, 1988. E um pedido de desculpas pela falta de acedia.

Trabalho de casa: o diccionário de O Mal


fintar: aplicado no sentido de levedar, fermentar. Ex.: deixámos o pão a fintar durante uma hora. Permite utilizações figuradas, claro: Não fintes o amor mais do que ele permite. Utilizada ainda na acepção de imposto, ou quotização voluntária. ex: Afinal sempre vão distribuir as fintas dos fogos.

abraxas: palavra mística da seita gnóstica dos basilidianos(séc.II). As 365 emanações de deus. Também referida como abrásax ( e intermutabilidadedo x com o s aponta para o número 3).

abrejar: tornar-se igual ao brejo (pantano)

abruptude: movimento repentino; ímpeto; impulso. ex:Censuraram aos estudantes a acédia e agora reprovam-lhes a abruptude.

absconso: escondido; abscôndito. ex: absconsa está ainda a tua finta para este diccionário.Mas nós acodiamos.

A paixão (post)uma

A jovem Sofia ao fazer compras no Continente apaixonou-se e foi correspondida. Ele veio, à vista de um carro carregado de esperança. Enquanto se esforçava por caminhar ao seu passo deu conta que os olhos dela se arredavam para um lado que ele não sabia. Quando ela acabou o post o rapaz tinha desistido. Mas, dupla ironia, não é que ele tinha um blog onde escreveu a cena mas-de-outra-forma? Talvez um dia se encontrem no Tecnohrati.

Enviado pelo Vasco

19 outubro 2003

Chinos de China
en Panama Air
las azafatas
son muñecas mestizas
de orquídea negra y mujer

los chinos roncan cansacios
reconocen la Coca Cola y el huevo duro

trabajarán
tierras ocultas en selvas roturadas
o buscarán el oro negro en bosques aterrados
las azafatas se casarán con petroleros o hacendaos
y morirán degolladas por los hijos de estes chinos

en el ano dos mil.


(M.V:Montalbán. Pero el viajero que huye)

Manuel Vasquéz Montalbán

Aparentemente, estamos en una situacão óptima para el establishment: ellos se lo guisan y ellos se los comen. (El Europeo, 1997)



No Aeroporto Internacional de Banguecoque, há oito anos, enquanto esperava um voo de ligação para Frankfurt, senti um frio cuja origem não era capaz de precisar. Comprei, numa das poucas lojas abertas, um elefante cujas patas se desconjuntam de cada vez que se tenta levantar. A certa altura da madrugada passaram três irmãs da congregação da Beata Teresa de Calcutá. Mas nem essa visão me apaziguou. Hoje recebo a notícia da tua morte em trânsito, com o atraso habitual de quem nada espera dos periódicos e, sobretudo aos domingos, não abre a televisão, e aboa-se aquela angústia esquecida.
Esperava há algum tempo o livro que anunciaste em 1997: No século 21 aparecerá a novela Milénio, onde Carvalho dará a volta ao mundo e passará em revista os referentes míticos do século 20. Verá o que ficou de Hiroshima, de Sarajevo ou da San Francisco dos hippies dos 60, no final de um século que se caracterizou por construir ruí­nas. Esta novela será a última do Carvalho investigador e uma homenagem a Júlio Verne e também a D.Quijote e a Sancho. Levaste contigo, para a que seria a tua última viajem, as provas da primeira parte de Milénio, e de certa forma como desejaste, Pepe de Carvalho sobreviver-te-á. Viveste bem. Estiveste onde devias: nos cárceres de Franco, na movida como exercí­cio quase poético, na explosão democrática do post franquismo e depois na crítica implacável ao sistema que continua a criar injustiça, desigualdade e desordem ao mesmo tempo que, e isso é ainda mais intolerável, se auto proclama como a única solução. Bebeste bem, comeste com requinte e disso deste receita. Defendeste o Barça, como parte do país da tua infância. Detestaste a escrita à procura de Prémio e a pesporrenta crítica engravatada, os que construíram um muro de betão entre as praias de Espanha e o resto do país, os dependentes de El Corte Inglés, o politicamente correcto incluindo na versão de esquerda. É verdade que o Pepe Carvalho queimou alguns livros. E que limpou o rabo a outros. Mas isso é para esquecer. Do Manifiesto Subnormal, Assassinato no Comité Central, passando pelos Mares do Sul, Pássaros em Banguecoque, O pianista, Franco, Galindez, deixaste-nos o que nunca te poderemos agradecer. A tua poesia não traduzida: Praga, Pero el viajero que buye; os teus ensaios sobre a Crónica Sentimental de Espanha.
Agora, em Dezembro, virá a primeira parte de Milénio e será a morte de Pepe Carvalho. Depois não entraremos mais numa livraria de Espanha com a esperança de encontrar um novo livro teu. Desaparece esta semana a tua coluna no El Pais.
Tu foste un hombre de mi vida, Manuel. Por cá continuaremos, enquanto não nos trair o coração. Uma coisa prometemos: levar, nem que sejam escondidas, a memória e a utopia. Sem medo: comendo, bebendo, amando. Cumprir o teu programa mínimo que era, vou-me lembrar: Criar problemas.

Programa linguístico: trabalho de casa



abioceno: local onde não existem seres vivos.
ex:No verão caminhou quase sempre no abioceno- mas só ao mostrar as fotos reparou.

aboar: estabelecer sinais para separar (um terreno); dar a inclinação ideal a uma janela ou porta deforma a que entre a luz desejada; clarear.
ex: escrevo às escuras, se me não aboas.

acange: aventureiro de guerra, mercenário.
ex:Assinada a paz os acanges foram dispensados. Constatada a sua perigosidade entregaram-lhes o Ministério das Questões Sociais.

acédia: enfraquecimento da vontade, apatia.
ex: Os que passam a vida a criticar aos estudantes a sua acédia preocupam-se agora com a sua impulsividade.

acme: ponto culminante, topo, climax. Acmeísta: movimento literário iniciado em San Petersburgo e que integrou Anna Akhmatova e Mandelstom.
exs. Quase no acme ela distraíu-se com um verso de Akhmatova.

Isso é bom ou mau?

Ainda o Zé Manel, ligeiramente eufórico:" Todos os titulares de órgãos de soberania, todos está a ver, saíram da Faculdade de Direito de Lisboa. E, para que não restem dúvidas, enumera, contando pelos dedos- tique expressivo que, sem querer, aprendeu com o colega-das-feiras (têm que lhe dizer) : o Presidente da República, ele próprio, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Presidente da Assembleia da República, etc, etc,...
Saíram todos da Faculdade de Direito de Lisboa dos anos finais da ditadura. E isso é bom ou mau?

Jantar de curso

Primeiro o Zé Manel, depois o Pedro. Confessaram ambos. O nosso pesadelo actual é a cristalização de um sonho juvenil. Mas não fomos nós que o sonhámos.

18 outubro 2003

O Inverno

Choveu todo o dia. Vem aí o inverno. Oh meu deus! já me tinha esquecido: as mulheres abrem as arcas onde guardam aqueles panos horríveis com que vão tapar a pele, a dádiva distraída que vertem nas nossas mãos toscas de escultores. Restam-nos as disciplinas severas do inverno e a memória dos dias de alegria.

Programa Linguístico

Doze mil e trezentos verbetes no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Usamos mil e tal, apenas. Terá que ser assim? Vamos aprender seis palavras novas cada dia.

odre

No banco corrido da associação de amigos do bestança ou na capadócia ou no banco em frente, confusão, mostras-me os odres e o odreiro.

Resposta de Danton aos seus acusadores

Na mesa de conferência tornada (transtornada) mesa de interrogatório, Danton desabotoa a jaqueta e a blusa até à pele, sob o olhar atónito do seu algoz. E toca-se na mama, longamente, calando a nauseabunda retórica do verdugo. É sempre assim que voltamos à luta, que riscamos o trilho destes dias.

À espera das 972 folhas

Será que ela volta? Ou estaremos condenados a 28 folhas?

Bestança, Cinfães

Até daqui a pouco, no vale do Bestança para o passeio de Outono. André, não vens? Nem tu, Loura? Alda, nunca mais?

A Morte de Danton

de Georg Büchner, encenação de Paulo Castro com Vera Mantero, Jo Stone, Paulo Castro, João Samões.
Produção da Casa das Artes de V.Nova de Famalicão.
TAGV, Coimbra, 17 de Outubro

Vera Mantero é Danton e Jo Stone Robespierre. A sentença de morte de Danton será ditada por um Robespierre implacável e executada pelo organizador da conferência que desde o início se suspeita estar armadilhada para condenar Danton. No seu estertor, Danton, o republicano, levanta o Rei de Copas para o público. Saint Just, que vê o espectáculo pela televisão, telefona para o programa e dita uma visão terrorista da revolução, comparando-a aos cataclismos naturais. O texto de Heiner Müller intercalado no de Büchner é excelente. O trabalho de actores bom mas a encenação parece pouco imaginativa e as soluções funcionam mas são previsíveis. Danton é enforcado com a Bandiera Rossa e Robespierre sai em passo de ganso. Ficam frases terríveis no ar:
" A inocência nunca treme diante da vigilância pública (Robespierre)"
"O vício tem de ser castigado. A virtude tem de governar através do terror." (Robespierre).
"Terrível é a doença que faz perder a memória. Deve parecer-se à morte ".(Danton)

À saída, em completo extase Manterino, estava o Paulo do Mundo Imaginado. Danton não morreu em vão, a crer pelo entusiamo com que Paulo acredita que mil e um bloggers mais a gente criativa das artes e ciências estão a mudar o mundo. Mesmo que seja só o mundo imaginado e o legado de Danton, esta noite, resida mais no feliz orgasmo com que Vera se transfigurava.

17 outubro 2003

Mails ornitológicos

Não, não são novos desenvolvimentos do Flirt by Mail silenci[ado]oso há tempo demais.

É só um mail do Fernando Correia, conceituado ilustrador científico e presidente do GNSI-PT (Guild of Natural Science Illustrators Portugal Chapter, uma associação embrionária de ilustradores científicos portugueses e pessoas com afinidades com a ilustração, sem fins lucrativos), a dar notícia do “lançamento do volume 8, ‘Broadbills to Tapacullos’, da soberba e cuidada colecção Handbook of the Birds of the World, dedicada a toda a avifauna mundial. .. uma obra de referência obrigatória... exemplar em termos científicos e de apresentação gráfica”, editada pela Lynx Editions [www.hbw.com], que publicará os restantes 7 volumes à razão de um por ano.. e assim, mesmo sem os da Sofia, ficam garantidos mails ornitológicos até ao ano de 2010.

André Bonirre

Re: Insensatez

Um dia aprendi que quando os olhos se abrem é para sempre. Que uma vez visitado o deserto passamos a transportá-lo connosco sob a pele. Mesmo este mundo, que não era o que os meus olhos queriam ver, agora acomoda-se à forma aberta do meu olhar. Aprendi que o buraco que tenho no peito não decresce, não diminui, não fecha, não substitui. Está presente, por vezes adormecido, por vezes silenciado, por vezes morno como a pele debaixo das camisolas de lã, outras tantas grita, lateja, ferve na sua polpa de ferida aberta. Prova-o esta minha existência constante de soluços cardíacos. Um dia, como tu, entristeci demais, e não há regresso ao antes disso. Trago sombras nos olhos, umas vezes nota-se outras não. Ainda temo o apagar da luz, não gosto de acordar cedo, não gosto de ser chamada às tarefas mundanas. Escrevo, sabendo que nenhuma palavra alcança o mundo. Sonho, sabendo que a matéria dos meus sonhos não se compara ao contorno vivo de uma ausência.

posted by claire lunar, Littleblackspot

Re: Barman

Fui conduzido por um caminho que se cola aos vossos pés. Ele atrai e
alimenta-se da vontade dos que buscam a fronteira das coisas. A
atracção por ele é incomensurável e seduz os que fortes se julgam,
para enfrentar o que lhes apareça na busca da força redentora.
Iniciam a viagem no ponto comum ao semelhante e distinguem-se a
partir dali. Os intrépidos escolhem o vosso caminho. Mas isso não
basta para resistir ao mais duro dos percursos. O sol esconde-se e as
sombras pincelam temores em redor da criatura. Estreita-se o
horizonte do belo que perdura na memória. A resistência é abalada de
forma persistente. O bem e o mal não fazem sentido naquele momento
Encontro um atalho. Vislumbro uma nesga de sol e não medito sobre a
decisão em prática. Vou por ali. A claridade incomoda-me o espírito.
Sinto-me ofuscado pelos raios de luz mas não penso retomar a outra
via da redenção. Confundem-me com a uniformidade emanada da luz. “Por
aqui não chegas ao teu destino”. Duvido como sempre duvidei.
Entretanto uma árvore de semblante outonal coloca-se entre mim e o
Sol. A imagem que se me depara mostra-me o outro lado que conheci e
ao qual não resisti. Ouço os vossos passos e sei que vos espera o
sofrimento. Acredito que nos vamos encontrar num outro atalho
adiante...

posted by barman, Ouvido de Barman

Finalmente um abraço

Não foi no Teatro do Mundo. Foi no Zé Neto que nos abraçámos, uma semana depois dela te ter suturado, amorosamente, as tuas mãos decepadas. E ele, consciente da gravidade do momento, preparou uma soberba açorda de coentros para acompanhar os jaquinzinhos e as marmotas. Brindámos com vinho de Pias sob o olhar vigilante do Mal quando já o dever te reclamava.

Governo pode repôr a publicidade na Time

Depois de um responsável da revista norte americana ter explicado ao dr José Luís Arnaut que o artigo da Time não se destinava a discriminar as cidades de Braga, Viana, Melgaço, Pinhel, Caminha, Chaves, Miranda, Lamego, Régua,Covilhã, Castelo Branco e Fundão o governo prometeu repôr a publicidade, viabilizando assim económicamente o semanário. Por outro lado, um porta voz do grupo de cientistas da Universidade do Minho, Trás os Montes e Alto Douro e Beira Interior que estuda exaustivamente a prostituição feminina em regiões fronteiriças declarou, sob anonimato, ao Comité de Mulheres Sérias de Bragança que o fenómeno foi empolado pelo articulista americano. Segundo os dados disponíveis Bragança terá pouco mais de cem mulheres de alterne. O Comité não modificará as suas posições e exigências sem que os cientistas publiquem os resultados, o que se prevê para finais do próximo ano.

Efeméride

Passa hoje o centésimo décimo oitavo dia sobre a data em que José Pacheco Pereira prometeu comentar o fim de Flashback na TSF.

Ah, a polí­tica.

O editorialista mor, o verdadeiro, da folha do sor zé manel furnandes dedica ontem a sua prosa a Coimbra. O presidente da Associação Académica de Coimbra é chamado de mal educado por ter anunciado que não compareceria ao encontro com a nova ministra da Ciência e do Ensino Superior. Felizmente para o paí­s que o presidente da A.A.C. não está sujeito a falta injustificada, processo disciplinar ou internamento para reeducação por fazer polí­tica sem ser de acordo com as directivas do editorialista mor ( ou do ex-ministro da Educação). No mesmo editorial, o reitor de Coimbra é elogiado por criticar os estudantes e taxado de demagogo por criticar o governo. Os estudantes maus andariam, de acordo com o editorialista mor, a fazer aquilo de que verdadeiramente gostam: torturar os caloiros. Reactualiza-se assim a tese da geração rasca, muito querida à  folha, se bem se lembram. Agora que o fogoso estudante rasca de antanho é um sociobloguista bem comportado a banhos, o editorialista mor ficará talvez sem resposta. Momentaneamente desviado da tortura de um caloiro, um estudante a quem pedi um comentário mostrou-se surpreendido por o editorialista mor não estar no Iraque à  procura de armas de destruição massiva, na ressaca dos festejos do 25-de-abril-de-lá.

16 outubro 2003

Re: hugo

PLANNED OUTAGE

hoje
há cinco barcos à deriva
cinco passos a medo
em sete mares
há legiões de passos
multitudes de segredos
amanhã
haverá uma falta planeada
uma ausência antecipada
serão cinco hectares gretados
sete poços secos
ficarão pegadas senectas

posted by hugo, Ford Mustang

Marear

Isto aprendi à noite no sofá. No mar há ondas aberrantes – súbitas, solitárias, demolidoras, mortais – e as ondas berrantes que enrolam na areia e desmaiam e fazem os meninos berrar. Devemos cuidar-nos das primeiras, as outras são para brincar. Aprende-se muito na Odisseia.

André Bonirre
Em muitos lugares e com muito empenho no 100nada uma generosa iniciativa.

15 outubro 2003

Vale a pena


Porque gostamos de vos encontrar a todos os que escrevem (e lêm) mal como nós. Os que não aspiram a outra certeza que a andar por aí a confundir as coisas. Os que se sentem condenados pela macieira, árvore implacável, que nunca poderemos ultrapassar, os que na morte ( e chamaremos por enquanto à  morte a essa contracção, a essa rigidez, "a morte sob a macieira") procuram o espanto da vida. Ouvimos uma de nós dizer: "eu sou gorda, gorda e baixa" e às vezes alguns"afastam-se com as suas frases, estão a subir cada vez mais alto como um balão, através da folhagem, para fora do nosso alcance". Podemos prometer: "Vou atrás dela, Neville. Vou segui-la cuidadosamente, para estar junto dela e a consolar quando cheia de raiva pensar: " Estou sózinha."
"Mas quando nos sentamos juntos, muito próximos, as palavras que dizemos fundem-nos uns nos outros. Aqui estamos debruados pela névoa.
" Até agora valeu sempre a pena estar aqui, quase sempre tremendo, numa taberna como esta, aqui, convosco.

(créditos de Virginia Woolf, As Ondas)

(Não) ZiguezaguiREi até aos Galápagos


adormeço enroscado à falta de abraço
à falta de abraço seco-me ao vento
seco-me ao vento quando venho do fundo
quando venho do fundo viajo com aguarelas
viajo com aguarelas sem a montanha
sem a montanha canso-me na planície depressa
de pressa
(não) apanho o comboio
em Quito

André Bonirre

Motors de corrida à noite por cabo

um carros com motors de corrida, duas motas com motors de corrida, três barcos com motors de corrida, quatro balões com motors de corrida, cinco carneiros de contar, vendo, motivo à vista.

André Bonirre

Re: CAM

Amanhã irei conhecer-te antes e depois
das palavras na ante-câmara do teatro do mundo
na pequena caixa de sempre levarei alguns desejos
embrulhados com papel a condizer e laçarotes
falarei de olhos em baixo e mãos decepadas
e a minha boca há-de mover-se ao ritmo da tua
é tudo o que posso imaginar talvez
abandonar-me ao teu poder e depois
refugiar-me nas entranhas
do mundo.

Carlos Alberto Machado, Campo de Afectos

Re:

A Elsa disse que se eu voasse
me dava um beijo no ar
Se a Rita ouvisse o que ela disse
mandava-me passear

E a Marta se visse ou eu contasse
rodopiava leve sem parar

Mas a Lara riu-se da minha tolice
e fez castelos no ar
Para que a Sara parasse com a tagarelice
e me levasse lá a passear
Ou a Rute cantasse com a sua meiguice
e eu dançasse sem parar

Depois a Lia disse que se eu sonhasse
me deixava cantarolar
Para que a Bia me acompanhasse, voasse, dançasse
como borboleta no ar
Mas se a Sofia soubesse ou adivinhasse
corria, ria e ia logo postar...

Enviado pela Armanda

Re: RG

Se tivesse de escolher uma palavra, seria, perplexidade. Descobri-a muito cedo, numa tarde de praia adolescente, onde um livro me sussurrou a dimensão do céu. De então para cá, tem sido um desfilar de íntimos espantos. Desde muito cedo tive a prova de universos paralelos, até à universidade vivi em 12 escolas diferentes, muitas delas separadas por países de distância, talvez por isso me tenha sentido até muito tarde, estrangeiro no meu próprio corpo. Obtive a nacionalidade da minha pele, com o meu primeiro amor à distância, e foi com ela, que também descobri o meu amor pelas palavras. É claro que já conhecia palavras, como sangue, cor ou fumo, mas com ela aprendi outras mais silenciosas, penduradas na boca, nas mãos e no sexo escuro em tardes claras. Depois aprendi a palavra Inverno, num quarto vazio de uma cidade desconhecida. Felizmente, nunca tenho parado de aprender palavras novas, como amigo, viagem, teorema, azul, equação, lábios, céu, variável, vermelho, dor, complexo, abraço, sistema, morte, casa, entropia, chuva e riso, mas é com algum embaraço, que verifico a minha demora na palavra silêncio. Já mudei de casa 3 vezes e visitei 3 continentes, mas ele parece não me largar. Será que me podias dizer como soletrá-lo?

posted by RG, OzOnO

Re:Insensatez

O que sei de mim é pouco mais que os pés irremediavelmente gelados no inverno, o transtorno que é recordar um amor que se despediu no verão, a cicatriz funda abaixo do joelho esquerdo que não me deixa esquecer que em criança não quis aprender a andar de bicicleta. Tenho medo do escuro e do que nele habita, custa-me o primeiro silêncio da noite e a resignação de apagar a luz. Gosto dos cachecóis de muitas cores e de camisolas brancas em Dezembro, gosto do barulho dos comboios na estação, gosto dos gatos pequeninos quando ainda não têm senão garras e orelhas. O meu pecado mortal é a preguiça e o mal de que sofro é de intimismo excessivo. Tenho os olhos carregados de sombras e uma promessa de azul nas pálpebras cerradas. Um dia recriei-me numa figura que habita o papel, de olhos esbulhagados para o vazio.

posted by Claire Lunar

[-7.88;-5.28]

Fiz, como a Isabel (uuufff)o test do political compass recomendado pelo adufe.

14 outubro 2003

Da teoria à prática do céu

Se continuas, solitariamente, por ruas e rios de paredes, nós perseguimos-te. Se somos bons em alguma coisa é nisso.

Livro Aberto

Livro Aberto de hoje: dois Gatos Fedorentos e um Desejo Casar. Faltava ali um Marreta, não era? O FJV como sempre muito bem, a manter a conversa e a esconder-se atrás das mãos cruzadas. Arranque lento e final em beleza. Se durasse mais dez minutos a coisa animava. Gosto dos livros que citaram ( Nelson Rodrigues de Flor de Obsessão, Campo das Letras, p.ex., Michel Houellebeck de Partículas Elementares e de Plataforma, Martin Amis) e do modo como o fizeram. Excelentes as escolhas (Auster, a poesia bilingue editada na Quasi).
O momento supremo- espero que tenham apreciado, senão revejam às horas impróprias que a RTP Um reserva para os livros, amanhã, para os sobreviventes narcotizados de todos os futebóis- foi a Teresa Siza a mostrar os seus livros e a forma como ela passava as mãos sobre as lombadas, a carícia subtil antes de os dedilhar.

Re:

esta não sou eu. é isto tantas vezes.
nos reflexos turvos das impressões dos outros espelho nenhum. esta não sou eu.
não eu no nervosismo com estranhos, não eu nos dias mare(j)ados, não eu no desconforto das vozes.
tenho um relógio que teima em atrasar quando vem para o meu pulso. tenho uma bicicleta de vinte e tantas velocidades que quase não uso. tenho um só anel, de lata. perdi a aliança de ouro e platina que o meu pai ofecerecera à minha mãe, depois disso nunca mais me emprestaram ou confiaram jóias. tenho os óculos empenados, depois me esquecer deles na cama e de lhes pôr o joelho esquerdo em cima, enquanto me esquecia de mim num beijo - dizem que beijo bem. vejo francamente mal do olho esquerdo. sou dextra. não conduzo muito. tenho as noites mal dormidas, tenho os dedos muito tortos, apesar disso, não diria feias as minhas mãos, tanto mais que me livrei da verruga que tinha na base do polegar. em criança usei calçado ortopédico, ainda hoje não são muito certos os pés, denunciam-me todas as solas de sapatos.
faço de conta que não me importo. importo-me quase sempre. lambo feridas todos os dias, não para que sarem, mas para que não sequem nunca.
há dias de muito medo, mas do que gosto mesmo é dos dias de muito vento.


posted by clAud, Tempo Dual

RE: André B.

Este é o André, um número mecanográfico num posto de trabalho de uma sociedade anónima.
Gosta de se pensar e apresenta-se aos íntimos como escritor profissional não literário fluente em linguagens de léxico pobre, reduzidíssimo, mas severas na sintaxe e exigentes no encadeamento lógico. Pratica uma escrita sincrética feita de excesso de nicotina, frases elementares e algum café. Os textos, sem manchas metafóricas e parcos em retórica, são textos de acção/execução e apropriadamente chamam-se utilizadores os seus leitores. Para ele, essência sempre foi naturalmente gasolina.
O André está a mudar, espantou-se com a Natureza do Mal. Ele, o bem não imobilizado parelha de um terminal cadastrado, começa a transformar-se ao ser tocado no TAGV pelos ‘pequenos ventres bojudos’, vê o ranger da ‘agitação de nádegas’ e Vila-Matas, sentiu-se a agarrar e a morrer, fascina-se, envia figos pingo de mel, ‘sofre dum mal de espanto’, ri-se agora como a Zazie.
A busca que fez ao meio dos oceanos gorou-se, está escrito no rolo do papiro. Não inteiramente.

André Bonirre

Re:

Nunca me vi girassol, é animal a minha pele e aquilo que guarda e repete. Arredo os olhos se não mos sabem pedir, livro-os do espaço concreto se quero aconchegar-me. Desmancho um joelho, arranco a solidão a um pé descalço, lanço um braço e danço um acordeão furado que compõe respiração. Nasço em sequências certas do desencanto que me é fatal, cheirei cedo o meu cabresto. Persigo tudo o que não digo, sou a que tomba sem ruído. O meu terramoto é em mim que ruge, esqueci o princípio, é para sempre sem nome. É minha a casa dos mortos.

O André não veio. Deixam-nos alguns comentários umas almas penadas como eu. Nesta casa dos mortos podemos escrever o que quisermos que só ouviremos, penosamente, o nosso eco. Quando editei Emma Thompson olhei-a três segundos nos olhos (eu sei que não devia) e apaixonei-me. A merda é que isto é verdade. Agora como é que vou trabalhar sem estar de vigia à casa dos mortos?

Olhem bem


Olhem bem para esta face. Tudo o que nós queremos de uma mulher, tudo o que podemos desejar dela, está aqui.
Voltarei a este tema.

Re: R.

Tenho saudades do tempo em que tinha saudades do meu primeiro
namorado. Agora, tudo em mim arde depressa e me deixa sem
fôlego e não sei sequer dizer como tudo aconteceu. Nenhum dos
meus diários sobreviveu - rasgadas e queimadas as folhas. De
resto, nunca precisei de outro registo de lágrimas que não o
dos meus olhos. Pouco passa das oito da manhã e escrevo isto
no autocarro que me leva a Lisboa. Forço a letra torta contra
as curvas e o pavimento irregular do asfalto. De manhã, o meu
ritmo é outro. Preciso de tempo para me resgatar ao sono, para
recuperar o que de mim resta da noite, em rituais de água bem
quente e cosméticos. Nunca saio de casa sem maquilhagem;
ninguém precisa de conhecer o meu verdadeiro rosto. Quando
sozinha no metro, raramente me sento, num misto de absurda
timidez e voyeurismo (de pé, é sabido, é mais ampla a visão
geral). Dizem-me que não tenho ar de intelectual e, na
verdade, não me importa intercalar versos com conversas sobre
cortes e colorações de cabelo. Não sou já capaz de grandes
incêndios, como vos disse. Há na minha vida um terramoto com
nome de homem e isso é tudo. Com o Inverno, acentua-se a má
circulação do sangue nos pés e nas mãos e arrefeço. Desconheço
o mundo e sempre me surpreendem os elogios. Irrita-me a
distinção entre o virtual e o real - problema meu, talvez, que
sempre misturo tudo. Pouco mais me resta a não ser dizer que
não gosto de me expor desta maneira, quanto mais não seja
porque, mesmo dizendo a verdade, sempre minto. Faço-o, no
entanto, porque, sei-o, se não fosse isto, estaria mais
sozinha.

R

A frase do dia

As pessoas quando são maiores e vivem num país democrata deslocam-se às casas que querem

Cidadão brigantino ao repórter Estácio Olímpio (Antena UM, 9:00)

Mila Jovovich veste Armani

Neste café não é permitido
o estudo nem a leitura.
Já só temos bilhetes para sócios.
Dia dos mancebos cria divisões.

Temos carne de gado barrosão.
Embalsamado em vinte e quatro
mausoléu encerrado para reparações.

Cuidado com a privatização das lezírias.
Lia mais ensaio agora é ficção.

Mila Jovovich veste Armani

Re:

Acordo e não falo
sussurro
tenho medo de experimentar a voz
de não ter voz, não reconhecer o som
tenho medo que me doa o som da voz
que me doa a voz.
Acordo e levanto-me
sussurro, sussurros
ouço como eco
é uma doença, uma epidemia
súbita, simpática
ninguém usa a voz
o jogo não acaba, muda
de nível
usa os olhos
usa as mãos traz os gestos
usa o corpo traz o calor.
Avanço mais
sussurro, sopros
de vento do tempo levam
páginas do calendário
hoje estava marcado
alguém levanta a voz
não estranha o silêncio
da resposta
o esforço
a dor no sussurro.
Ando e ouço
trazem-me leite com mel
recomendam-me chá de casca de cebola
inquietam-se com a minha doença tão prolongada
servem-me sumo de laranja
mais páginas caiem
acompanhando as folhas sazonais
enfeitam o chão
piso-as suavemente e
chhuuu
não tomo nenhum conselho.
Amanhã acordo e
não falo
sussurro.

PC

13 outubro 2003

Re:humberto

Leio-vos a contra gosto. Como as novelas, na televisão. Não gosto muito- mas tenho tempo e preciso de o preencher. Sou metódico. Dedico-vos dez minutos depois da sessão de atelier que me ocupa as tardes. Do Luí­s ( e agora do André) nada me surpreende. Leio-os há tempo de mais. O PC, prefiro ir ao blogue dele, sempre é mais genuíno. Agora a Sofia, é mesmo o seu nome? desconcerta-me. Sim eu sou Humberto. Embora nos comentários assine com minúscula, não aspiro a nenhuma ocultação. Desaprovo o jogo de pseudónimos e além disso não teria imaginação para escolher um. Humberto é o meu nome e por isso chamo-lhe Sofia acreditando não estar a ser enganado. O que me afasta do que escreve, Sofia é que invadiu os meus domínios. Toda a vida trabalhei com a matéria que, agora, com uma facilidade quase indecente, nomeia. Eu não posso exigir-lhe mais: se lhe faltasse talento seria um alí­vio. Facilmente a substituiria, na agenda do fim de tarde. Fosse a sua atitude mais ligeira para com os mortos e havia de lhe fazer chegar a minha desaprovação. Não dominasse essa metalinguagem com que se diz a nossa ciência, e eu acharia que, como o Luí­s com a literatura, a Sofia falava do que não conhecia. Mas quase tudo em si me parece perfeito. Não fora esse frequente tropeção doméstico, esse desejo absurdo de sofrer que parece ser por aí tão comum nas escreventes da sua geração e eu julgaria estar face a um enfraquecimento crepuscular da minha razão: alguns dias, ao abrir o écran para a minha obrigação vespertina, julgo encontrar, ao lê-la, o que em tempos não muito distantes, escrevi.

recebido no mail de anaturezadomal

Intolerância a falhas

{ o especialista

faz

a

a) apresentação

[ tipologia em estrela.. backbone a gigabit.. Switchs redundantes.. ] // aplausos

e

formula

b) o problema

[ .. empastelamento.. desempenho degradado.. ] // colapso

}



{ os inspectores

trazem o

c) diagnóstico

[ .. persistentes mensagens aberrantes.. confundimento.. I’m the Master..

Switch serial number A454XZ = desordem anarquia caos ] // esquizo aleatório

e

ditam

d) o veredicto

[ A454XZ.. retoma recusada.. irrecuperável..

=>

Para Abate! ] // actualizar cadastro

}



{ [ Despacho,



(aos SI,)

execute-se ] }

André Bonirre

Re: Sandra Costa

eu sou a das sombras e do sol a que usa a linguagem dos pássaros a um canto da janela como se esse fosse o fio invisível que nos prende ao chão e não nos permite voar a que abrevia fórmulas de entender o mundo sem nada saber de física e matemática a que não aguenta a imensidão um anjo às costas de costas voltadas para o futuro e assim explode em danças estáticas no princípio de um claustro a que tem dificuldades em convocar narradores para as palavras e as liberta sem pudor a que gosta de chuva sendo a do sol a que em certas noites de verão se enrodilha de desejo sendo a das sombras

eu sou a que me persegue e tudo fica por dizer dizendo tudo

recebido no mail de anaturezadomal

Re:jpn

esta palavra não é esta palavra, apenas a eternidade que demorou a escrever-se. pudesse eu dar-vos esse tempo. só escreves coisas tristes, disseste, enquanto fechavas à chave...o que é que fechavas à chave? não me lembro o que era. só me ocorre o barulho das voltas com que a chave torneava a fechadura. o som. o som no tempo. não escreveria outra coisa se soubesse. mas não sei. tenho que meter tudo num corpo e... E o quê? há pouca coisa mais verdadeira em mim do que as personagens que criei. criaste o quê? como és capaz de dizer isso? elas vieram ter contigo, tive de te abanar, despertar... A Esmeralda...A Esmeralda o quê, esqueceste-te, pá, há quase vinte anos, a resende fazia lisboa-braga em viagens pirata, ela veio, Senora del Rio, lembras-te?, só tinha um lugar livre, ao teu lado, e tu...
A Esmeralda dizia,
"só gostava que houvesse menos cabrões no mundo. nem pedia mais nenhum desejo. gostava até que não houvesse nenhum cabrão no mundo. Fosse português, espanhol, inglês ou chinês, não importa...já alguma vez cheiraste um cabresto? Devia haver neste mundo uma lei que obrigasse toda a gente à nascença a cheirar um cabrão. Toda a gente, fosse católica, apostólica ou romana, todos tinham de dar com os cornos naquele fedor. E tinha de ser à nascença, um minuto depois já era tarde de mais..."

posted by jpn (respirar o mesmo ar)

Blogando

Nós sabíamos que ele não aguentava.
Durante meses julgámos que eram epístolas do Cavaleiro de Laclos actualizadas à novela. Hoje caímos num blog interesante e actual. Quem são vocês afinal?
Depois da chegada do André Bonirre, eles encontram-nos. Les beaux esprits...
Um abraço para do mar.

Re: hmbf

a primeira vez que nasci foi numa cidade do antigo oeste, disparado para dentro de um útero que, anos mais tarde, serviria para estender a roupa suja de um corpo iniciado na morte. a segunda vez que nasci foi numa capital de aldeias divididas por praças deslavadas, numa paragem de autocarro, de madrugada, a aprender o «ofício de viver» com empenhada solidão. a terceira e última vez que nasci foi numa falésia de esquecimento, a tentar resolver a dor da traição e o ódio daí crescente. devo hoje ser um misto disso tudo, embrulhado em papel de medo, amarrotado, à espera de um destino que me caiba em sorte.

recebido no mail de anaturezadomal

Bebo como tu


[Ao Manuel de Freitas]

Vou pelos teus sí­tios
calçada dos Mestres, rua de Campolide,
taberna de Dona Maria, ao Rego.
É domingo ou feriado
fugiram todos
ou casaram-se no verão
em todos os verões passados e futuros
com lista
e copo de água pago pelos pais
Peço as bebidas fortes
e lembro-me de ti
e dos teus versos.
François Villon foi meu contemporâneo
-literalmente, como diz o outro.
Sofri recentemente de um mal sem cura
A doença de Montano.
Nunca o cadáver de deus me atormentou
e sei que é do gin que bebo
o sentido que ao crepúsculo possa achar
ao que leio ou escrevo.
Do gin e do grepúsculo.


Aqui na tasca
debruçado sobre os teus versos
longe da livraria
onde ainda não pousou
o pó tóxico de mais um lançamento literário
o gato aproxima-se para lamber a mão
que não lerá nunca mais
os poetas mortos em 61

Aqui ao balcão
ou na mesa do fundo
vendo passar os que podem bem ser
os teus amigos
vivos ou mortos

um lugar como os outros
(oh mas bem melhor que os lugares
fúteis execráveis lugares deles)
para me encharcar
com a noção de gravidade
e do mistério
da morte.

12 outubro 2003

..

pequena borboleta da noite
o ar que levantas
desfaz-se em pó

RE: CJ

Este sou eu no espelho tenho uma cicatriz de bisturí na cara e traços sumidos de uma luta a sério sou o cão da matilha sem chefe adormeço enroscado à falta de abraço seco-me ao vento quando venho do fundo viajo com aguarelas sem a montanha canso-me na planície depressa não apanhei o comboio em Quito nem ziguezaguiei até aos Galápagos guardo inteira uma resma de papel acetinado mate para uma BD com fotografias por acabar digo cada vez mais vezes sim releio mais do que escrevo vivo num sótão que tem uma cave ou talvez seja tudo isto ao contrário, olho no espelho o futuro arranco as portas da casa e, finalmente, danço uma milonga, ai, com o meu amor.

André Bonirre

Vila-Matas

Não há nada para dizer. Salvo que, sem a literatura a vida não tem sentido.
Foi assim que Enrique Vila-Matas se dirigiu às cerca de 150 pessoas que tinham ocupado a Biblioteca Grand-Parc em Bordeaux, ontem sábado, passava pouco das cinco da tarde.
Na verdade ele disse: "No hay nada que decir, salvo que, sin la literatura, la vida no tiene sentido". Quase ninguém na assistência falava castelhano pelo que se seguiu um longo silêncio. Depois alguns sussurros, risos nervosos, agitação de nádegas, tosse. Enrique continuava silencioso. Parecia aborrecido, como se esperasse algo. Ao fim de algum tempo de indecisão um elemento da organizaçã levantou-se da segunda fila e disse: " On ne sait jamais quand M. Vila-Matas parle sérieusement." Enrique interrompeu perguntando-lhe quem era. Quando ele lhe declarou ser um editor, Vila-Matas disse, virado para o público: Trabajan con entusiasmo contra lo literario.Inimigos acérrimos de lo literario y aliados directos de la mugre de Pico.
Como alguns na assistência rissem, Enrique interpelou-os perguntando -lhes como ganhavam a vida: Nous sommes des écrivains, ouviu-se na sala. Vila-Matas olhou-os com um olhar severo, embora se saiba que não tem outras emoções que as literárias, e trovejou: Essa raça, imitadores do já feito, e gente absolutamente falha de ambição literária, embora não de ambições económicas, é uma praga ainda mais perniciosa que os editores.Nessa altura abeirei-me dele tentando perceber se tudo estava bem. "Não vês que o meu corpo é a própria história da literatura?"disse-me e pareceu sincero. Como conseguiste? ainda lhe perguntei. "Encharcaram-me em batatas no almoço dos poetas mortos."-retorquiu.

Carrefour des Littératures

Em Bordeaux e em muitas localidades de Acquitaine decorre a iniciativa "Ponts sur l'Europe" juntando autores ao público em espaços variados.
Hoje na Bibliothèque Grand-Parc era a vez de Enrique Vila-Matas. Os organizadores publicitavam o encontro sob a designação de Le Grand jeu de Vila-Matas.
Há dias foi a vez do nosso Manuel António Pina, saído da Leitura Partilhada ler poesia no Chateau les Izards.
No próximo sábado na Bibliothèque Mériadeck 15h
Poésie en fête !
présentation de l'Anthologie de la poésie portugaise
contemporaine par Michel Chandeigne.

Dossier Maurice Blanchot

O magazine littéraire de outubro inclui um dossier sobre Maurice Blanchot : L'énigme Blanchot, com inéditos de Lacan e do próprio Blanchot e textos de Jacques Derrida, Michael Levinas, Jean-Luc Nancy e outros.

Antologia de O Mal: Manuel de Freitas


Cocset,2002

Não te esqueças de Casals,
do perfume sombrio das laranjeiras,
dos primeiros versos de Eugénio
ou daquele tio que desiludiste
ao dizeres que não era de mulher
o corpo que esses versos
mais amavam. Não te esqueças.

Tão depressa a morte cairá
sobre este poema. Recorda,
porém a buganvília que abraçava
a varanda da casa e os amigos
todos que lá iam. Volta a sentir
na tua mão o peso das mãos
que um dia tiveram a destreza
do arco sobre as cordas
- à mercê de uma música sem saída.

Não te esqueças.
Ou melhor:esquece-te.

in Büchlein für Johann Sebastian Bach, Assírio e Alvim (2003)